“Eu sei que eu cheguei lá [na Colônia Souza Araújo] em 1964 e saí em 1975. Onze anos lá dentro”. A voz é mansa, mas as palavras pesam como pedra a José Fernandes, que, aos 82 anos, olha para trás sem rancor, mas também sem esquecer. Foi internado compulsoriamente ainda jovem, aos 21, quando descobriu que tinha hanseníase — na época, chamada de lepra.
Nascido em 30 de junho de 1943 no Amazonas, José conheceu a doença aos 21 anos, três anos após ter se casado, aos 18 anos. “Me casei e, depois de casado, me apareceu a hanseníase, na época chamada de lepra. O meu sogro achou por bem tomar a mulher de mim, porque eu era doente, e ela era sadia, não podia viver comigo. Foi o primeiro obstáculo da hanseníase”, explicou.

Já no Acre, José Fernandes foi direto para a Colônia Souza Araújo, à época chamada de Leprosário. “Na época, cada um doente lá tinha uma madrinha aqui na cidade. O nome da minha madrinha era Nancy Vilela. Era quem mandava presente pra gente lá. E além dela os maçons, todo ano, no Natal, levavam muito presente”.
A lembrança não é só dele. Durante décadas, milhares de brasileiros viveram a mesma segregação. Pessoas arrancadas de suas famílias, levadas a hospitais-colônia ou mantidas em isolamento nos seringais, privadas de liberdade em nome do medo. No Acre, essa história começou a mudar nesta semana. Isto porque, nesta terça-feira, 16, o governo do Acre publicou um decreto que cria a certificação oficial para pessoas que foram compulsoriamente internadas ou afastadas do convívio social por causa da hanseníase até 1986, quando a prática foi encerrada no Brasil. Além de um documento, é um gesto de reparação.
“Até 1986, muitas pessoas no Acre foram afastadas de suas famílias por causa da hanseníase, e hoje damos um reconhecimento simbólico e público a essas histórias”, afirmou a vice-governadora e secretária de Assistência Social e Direitos Humanos, Mailza Assis. “A certificação é um instrumento fundamental para garantir dignidade, visibilidade e acesso à política de reparação. É tempo de reconhecer, valorizar e acreditar. Cada história importa. O Acre honra a sua gente e a sua memória”, enfatiza.
O decreto prevê ainda a criação do Livro Estadual da Memória das Pessoas Afastadas pela Hanseníase, destinado a registrar os nomes das pessoas certificadas. A divulgação dos registros será feita somente com autorização do interessado, garantindo respeito à privacidade.

A execução da medida ficará a cargo da SEASDH, que deverá regulamentar os procedimentos administrativos, manter cadastro das pessoas certificadas e articular-se com órgãos federais e municipais para fortalecer políticas de memória e reparação.
“Um crime do Estado brasileiro”
O decreto regulamenta a Lei nº 3.407, de 2018, que reconheceu oficialmente a segregação compulsória. Para o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase, (Morhan), que completa 43 anos neste sábado, 20, a medida é uma conquista.
“Para nós do Morhan, a regulamentação desse decreto é uma forma de reparação pelos danos causados pelo isolamento e pela internação compulsória até 1986”, explica o coordenador estadual, Elson Dias. “Esse decreto reconhece a discriminação e o sofrimento vivenciado por essas pessoas e seus familiares, buscando reparar uma dívida histórica do país. É um ato de justiça de transição e reparação de um crime cometido pelo Estado brasileiro”, explica.

Elson lembra que muitos foram isolados não apenas em hospitais, mas também em seringais e até dentro de suas próprias casas. “Foram tratados há décadas às margens da sociedade. Para nós, é fundamental que a ausência de documento formal não seja usada como obstáculo. Essas pessoas precisam ter acesso ao certificado”.
O movimento estima que, só no Acre, aproximadamente 500 pessoas tenham vivido em confinamento compulsório. “Esse certificado representa muito para essas pessoas. Com ele, elas terão mais um reforço para requerer sua pensão especial, já prevista em lei federal. É reparação, mas também é esperança”, completa.

A memória de José
Se o decreto é um documento, a memória de José Fernandes é uma prova viva. “Na época não tinha tratamento, era só um paliativo”, conta. Foram 11 anos de internação compulsória. Quando saiu, em 1975, não foi por cura, mas por rebeldia. “Me expulsaram porque eu não era flor que se cheira, né? Foi por causa de uma namorada. Até hoje é minha esposa”, sorri, com ironia doce.
Mas o preconceito doeu mais que a doença. “O que me intriga é que até médico tinha medo da hanseníase. Como pode um médico, que estudou tanto, ter medo? A falta de conhecimento é que cria o preconceito e a discriminação”, desabafa.
A ciência e o futuro
A hanseníase, apesar de milenar, ainda é um desafio de saúde pública. O Brasil ocupa o segundo lugar no mundo em número de casos. A boa notícia é que há tratamento gratuito e eficaz pelo SUS. “É importante saber que hanseníase tem cura. Quando a pessoa inicia o tratamento, rapidamente para de transmitir a doença”, explica a infectologista Gabriela Cordeiro.

A hanseníase é uma doença infecciosa transmitida por meio de gotículas de saliva e secreções nasais de pessoas que não estão em tratamento. A transmissão ocorre por contato próximo e prolongado com o doente. Transmitem a hanseníase pessoas com a forma multibacilar da doença que não estão em tratamento. A cada dez pessoas que entram em contato com o bacilo, apenas uma desenvolve a doença.
Gabriela explica ainda que o diagnóstico precoce evita sequelas e complicações e sequelas. “Os sintomas começam com manchas esbranquiçadas, avermelhadas ou amarronzadas na pele, que vêm acompanhadas de perda de sensibilidade. Pode haver também formigamento, perda de força em mãos e pés, e até nódulos. O ideal é procurar atendimento assim que surgirem os primeiros sinais”, explica.
A médica reforça ainda a importância de examinar os contatos próximos. “Familiares que moram na mesma casa precisam ser avaliados. É uma forma de prevenção, porque o diagnóstico e o tratamento precoce são fundamentais para interromper a transmissão”.
O tratamento no Brasil segue o protocolo do Ministério da Saúde (MS), com medicamentos disponibilizados gratuitamente pelo SUS. A poliquimioterapia, combinando diferentes antibióticos, é eficaz e evita a transmissão da doença. No Acre, a medicação é distribuída para os 22 municípios, garantindo acesso universal ao tratamento.
No ano passado, o Acre registrou 161 novos casos de hanseníase, representando um aumento de 7,47% em relação a 2023. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde (Sesacre), a ampliação do rastreio e do diagnóstico precoce é um reflexo dos esforços conjuntos entre o estado e os municípios para enfrentar a doença.
43 anos de luta
O decreto vem em um momento simbólico. O Morhan, fundado no Acre em 1982 por Francisco Augusto Vieira Nunes, o “Bacurau”, completa 43 anos de existência. É a organização que mais deu voz às pessoas atingidas pela hanseníase no Brasil, combatendo o preconceito e lutando por direitos.

“Nós, do Morhan, avaliamos esse reconhecimento como mais um avanço para as pessoas acometidas pela hanseníase do nosso Estado”, resume Elson Dias. “A expectativa agora é que o certificado esteja nas mãos de todos que foram internados em seringais ou em suas casas. Com ele, poderão requerer a indenização prevista por lei e ter, enfim, a chance de reconstruir um pedaço da vida que lhes foi arrancado”.
Ao fim, não se trata apenas de decretos e documentos. Trata-se de nomes, rostos, histórias. Trata-se de José Fernandes e de tantos outros que viveram anos invisíveis. Se a hanseníase é curável, o preconceito ainda precisa de tratamento. O decreto não cura a dor do passado, mas dá a ela o lugar que merece: o da memória, para que nunca mais se repita.

E é assim que o Acre escreve um novo capítulo: não o capítulo do esquecimento, mas o da lembrança. Não o da segregação, mas o do reconhecimento.