Um novo estudo de físicos brasileiros propõe que a chegada dos portugueses à costa do Brasil em abril de 1500 teria ocorrido no Rio Grande do Norte, e não em Porto Seguro, na Bahia. A hipótese contesta a narrativa histórica tradicional e se baseia na análise numérica dos dados presentes na Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral que registrou expedições.
O artigo, publicado em setembro no periódico Journal of Navigation, da Universidade de Cambridge, é resultado da pesquisa dos docentes Carlos Chesman, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Cláudio Furtado, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Dupla revisou dados registrados por Caminha, como datas, distâncias percorridas em léguas, referências topográficas e descrições de fauna e flora. Eles também consideraram ventos, correntes marítimas e profundidades costeiras.
A partir desses elementos, aplicaram cálculos físicos, simulações computacionais, mapas dinâmicos e outras ferramentas modernas para reconstruir a rota.
Calcularam, por exemplo, a média de velocidade dos navios entre Cabo Verde, de onde a frota partiu em 22 de março de 1500, e o avistamento de terra no litoral brasileiro, em 21 de abril – cerca de 5,6 quilômetros por hora, compatível com embarcações da época.
Força de Coriolis
Para os pesquisadores, a chave está na combinação entre ventos alísios, correntes do Atlântico e o efeito da chamada força de Coriolis – uma força aparente causada pela rotação da Terra, que desvia massas de água e ar e teria papel decisivo na rota percorrida pelas embarcações portuguesas.
“É como tentar entrar em um carrossel em movimento: somos levados para o lado do giro”, explica o pesquisador Carlos Chesman ao g1. “A Terra faz o mesmo com massas de água e ar sobre sua superfície, criando rotas.”
Como o planeta gira, qualquer coisa que se move por longas distâncias, inclusive navios, sofre uma espécie de desvio. No Hemisfério Norte, esse desvio tende para a direita; no Hemisfério Sul, para a esquerda.
Com base nesses fatores, o estudo argumenta que é improvável que a frota, saindo de Cabo Verde, tenha seguido em linha praticamente reta até Porto Seguro. Pelas correntes e ventos analisados, as embarcações seriam impulsionadas a passar pelo litoral norte do Rio Grande do Norte.
A análise considera a distância percorrida entre Cabo Verde e o avistamento de terra (cerca de 4.000 quilômetros) e sugere que a trajetória se assemelharia à curva de um “S”, terminando no litoral potiguar, explica o pesquisador.
O monte “muito alto e redondo”
Um dos pontos centrais do estudo é a identificação do “monte grande, mui alto e redondo”, citado por Caminha. Pelos cálculos geométricos de Chesman e Furtado, para ser avistado a 30 ou 40 quilômetros da costa, o relevo deveria ter entre 70 e 125 metros de altitude.
O Monte Pascoal, na Bahia, tem 540 metros – o que significa que poderia ser visto de mais de 80 quilômetros de distância, incompatível com a informação registrada na carta.
Já o Monte Serra Verde, em João Câmara (RN), tem 240 metros e, segundo os autores, é a elevação que melhor combina com a descrição.
Além disso, a sua forma e as duas cadeias mais baixas ao sul (com o Monte do Torreão) correspondem exatamente à descrição da carta. “Caminha fala de um ‘monte’ e de outras montanhas ao sul; o atual Monte Pascoal tem formato de ‘pico’ e tem montanhas ao norte e ao sul”, nota Chesman.
Praia do Marco e “barreiras vermelhas”
O ancoradouro descrito por Caminha (“tão grande e fino e seguro que nele poderiam caber mais de 200 navios e naus”) corresponde a uma área aproximada de 200 mil metros quadrados.
De acordo com as medições realizadas via imagens de satélite pelos pesquisadores, a Praia do Marco, em Touros, no litoral norte do RN, tem dimensões mais compatíveis. Porto Seguro, nessa comparação, teria cerca da metade do tamanho.
A carta menciona ainda um rio estreito nas proximidades do local de desembarque: o artigo dos físicos sugere que a primeira praia visitada pelos portugueses, 60 quilômetros ao sul da Praia do Marco, foi provavelmente a Praia de Zumbi, no município de Rio do Fogo (RN), na foz do Rio Punaú, onde riachos pequenos são típicos.
O Rio Buranhém, no Sul de Porto Seguro, com 300 a 500 metros de largura, não combina com o relato por ser muito largo.
Outro elemento é a referência de Caminha a “grandes barreiras vermelhas” ao sul, a uma distância de 20 a 25 léguas (120 a 150 quilômetros) do ancoradouro. A essa distância da Praia do Marco ficam os penhascos avermelhados da Barreira do Inferno. Não há formações equivalentes ao sul de Porto Seguro, segundo os autores.
Implicações da pesquisa
A hipótese do desembarque português no Rio Grande do Norte não é inédita. O interesse em revisitar a Carta de Caminha sob perspectiva científica surgiu, segundo Chesman, da conexão pessoal e acadêmica com a história potiguar. Natural de Caicó (RN), ele conta que sempre ouviu falar da hipótese defendida pelo historiador Lenine Pinto, do Instituto Histórico e Geográfico do RN (IHGRN).
O estudo também dialoga com trabalhos do pesquisador Manoel Cavalcanti Neto e do historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), que já considerava possível a chegada em território potiguar.
Para o físico, o estudo mostra como as ciências exatas podem contribuir para revisitar documentos históricos para além do valor literário.
“Em 1500 não havia sequer gramática da língua portuguesa; hoje sabemos que uma vírgula pode mudar todo o sentido da leitura. Os números não. 660 léguas ontem e hoje é a mesma distância”, argumenta Chesman. Apesar de não ser uma medida padronizada, o valor da légua é estimado e reconstruído de acordo com cada período histórico.
Ele acredita que as universidades se beneficiariam ao investir em instituições interdisciplinares, expandindo para além do formato multidisciplinar. A dupla agora busca o diálogo com historiadores, que não tiveram participação na pesquisa, para amadurecer e validar a discussão proposta.

Por: G1








