Começa com um namoro virtual, com palavras doces e gestos afetuosos. A vítima, geralmente uma criança, ganha confiança no usuário do outro lado da tela, distante e desconhecido. Em questão de tempo, ela se torna alvo da sextorsão.
“Quando a vítima manda a primeira foto íntima, o primeiro vídeo íntimo, a vida dela e da família acaba”, alertou a delegada Lisandrea Salvariego, chefe do Núcleo de Observação e Análise Digital (Noad), da Polícia Civil de São Paulo.
“A sextorsão envolve todo tipo de ameaça, chantagem ou mesmo manipulação para fins de abuso e exploração sexual”, explica Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da SaferNet Brasil.
“Mas o termo que tem sido recomendado pela comunidade, pelos especialistas, é extorsão sexual, para enfatizar o fato de que se trata de uma violência que se caracteriza pela chantagem para fins de abuso e exploração sexual”, sinalizou a especialista.
Os alvos costumam ser crianças, inclusive as mais novas, a partir dos sete anos de idade, como Lisandrea já identificou pessoalmente.
“Até no máximo 16 anos, porque quando ela fica com 14, 15, ou 16 anos, começa a adquirir uma maturidade emocional e não é mais tão fácil de cooptar. Elas não acreditam tanto no agressor e são mais resistentes a eles”, explicou a delegada.
Juliana apontou que crianças e adolescentes são mais vulneráveis porque elas podem, com maior facilidade, serem cooptadas, aliciadas e enganadas. “E muitas vezes produzem esse conteúdo como forma de ceder às práticas de ameaça e de chantagem”, acrescentou.
Ameaças e medo
O agressor é paciente e insistente. Um namoro virtual pode durar cerca de 10 meses até que a primeira foto íntima seja pedida e as ameaças comecem, apontou a delegada.
“[Depois da primeira foto] ele pede mais e mais. Por vezes ela não quer mandar, e aí ele pega bem pesado, e diz que vai divulgar a foto ou vídeo íntimo feitos e enviados voluntariamente pra mãe, pro pai, pra família, pra escola, pros amigos próximos que ele já sabe quem são. Isso porque eles são bons de engenharia social, eles conseguem tudo isso muito fácil da vítima”, detalhou Lisandrea.
Uma pergunta que a delegada ouve com frequência é: “Como as vítimas cedem? Elas acreditam nas ameaças?”. Lisandrea explica que sim, até porque as intimidações são, de fato, reais.
“Eles divulgam fotos de documentos. Hoje os nossos dados estão vazados no Telegram, tem vários bots de acesso ilegais aos nossos documentos”, relatou. “Elas acreditam assim como qualquer um acreditaria”, acrescentou.
Quando as ameaças colocam a integridade em risco
A partir de um tempo de intimidação, sendo chantageada por um tempo, a vítima começa a se submeter a “rituais de automutilação”, e se torna vítima de estupro virtual, para que as imagens íntimas não sejam vazada, explicou a chefe do Noad.
Na última semana, um jovem de 18 anos em Agrolândia, no interior de Santa Catarina, acusado de estimular jovens, por meio do Discord, a praticarem automutilação. Ele teria feito cerca de 30 vítimas entre 10 e 15 anos de idade.
Em um dos casos, para desafiar a polícia, Luiz Fernando Souza mandou uma jovem escrever o nome da delegada Lisandrea no corpo com uma navalha.
No celular e no computador do suspeito foram encontradas diversas mídias de crianças e adolescentes com feridas de automutilação – inclusive com marcas de símbolos de ódio, como a suástica nazista.
Meninas são alvo mais frequente, mas homens também são vítimas
As principais vítimas da extorsão sexual são meninas, mas meninos também são um alvo em potencial. Lisandrea lembra do caso de um jovem de 16 anos que acreditou estar namorando uma menina que conheceu no jogo FreeFire.
“Ele acreditava que era uma menina, acabou mandando foto íntima, vídeo íntimo, e começou a ser extorquido por isso também”, contou.
Por outro lado, os garotos geralmente são cooptados para reproduzirem valores machistas. “A gente sabe que são comunidades de meninos que compartilham de valores que são misóginos, de discurso de ódio contra as mulheres, então é um problema grave”, alertou Juliana.
Os desafios para a vítima
Mesmo enquanto vítimas da sextorsão propriamente dita, os meninos são menos julgados do que as meninas, analisa Lisandrea. Para a delegada, trata-se de uma questão sociocultural.
Para Juliana, nos casos femininos, a própria vítima se culpabiliza por ter sido vítima de um agressor na internet. “A gente sabe que muitas meninas sofrem muitas vezes por um longo período e não falam que estão sofrendo esse tipo de violência por medo. Medo de retaliação, do agressor piorar a violência, ou por vergonha também, e vergonha de contar para a família”, contou.
No combate diário a crimes virtuais que vitimam crianças e adolescentes, Lisandrea disse ver muitas famílias “desconectadas”, e casos em que a própria família dificilmente vê o alvo como vítima. A situação agrava o problema para a pessoa agredida, que muitas vezes se sente coibida a falar.
“A mãe não confia na filha e vice-versa. Já aconteceu em inúmeros casos que a gente conseguiu resgatar a vítima, e depois eu tento estabelecer um relacionamento entre elas para que a mãe, de uma maneira muito afetuosa, acolha essa vítima, porque eu preciso que essa vítima fale onde tudo aconteceu, como tudo aconteceu. A mãe não pode ser inimiga da filha, porque a filha é vítima”, ressaltou.
O primeiro desafio para lidar com os crimes de sextorsão e estupro virtual, segundo Juliana, é fazer com que as vítimas falem e busquem ajuda. O segundo, é que as autoridades deem uma resposta adequada ao caso.
Por Metrópoles







