Mesmo protegidos por lei, processos envolvendo crimes sexuais contra crianças e adolescentes ficaram abertos ao público por anos no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), permitindo que sites jurídicos divulgassem nomes completos, escolas, bairros e relatos detalhados das vítimas. A falha, revelada pelo g1, deixou marcas profundas: jovens que sofreram abuso na infância relatam que a exposição os persegue até hoje, com julgamentos, constrangimentos e impactos diretos em suas vidas pessoais, escolares e profissionais.
Um desses jovens, hoje com 29 anos, conta que a exposição começou ainda na adolescência e nunca cessou. Vítima de abuso sexual na infância, ele acabou inicialmente tratado como réu em parte do processo, antes de a Justiça reconhecer que também havia sido violentado e manipulado pelo agressor. Mesmo após a extinção do caso, decisões judiciais com seu nome continuaram disponíveis em sites jurídicos.
“Isso já rodou em grupo de WhatsApp, na minha comunidade, na escola. Eu tive que mudar de colégio. Até hoje aparece alguém mandando print e perguntando o que aconteceu”, relata. “Ali está só um recorte do processo, sem o desfecho, sem a verdade completa. As pessoas julgam pelo que veem.”
Segundo a apuração do g1, o processo — que deveria tramitar sob segredo absoluto, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — ficou acessível no Diário Oficial da Justiça de São Paulo e foi reproduzido por plataformas privadas, como o Jusbrasil. Somente nesta sexta-feira (12), após ser acionado pela reportagem, o site retirou o conteúdo do ar.
Exposição detalhada e ilegal
Os documentos traziam informações suficientes para identificar claramente as vítimas: nomes completos, bairro de residência, escola frequentada, descrição minuciosa dos fatos e depoimentos. Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que qualquer um desses dados, isoladamente, já configura violação grave de direitos.
No mesmo processo, também estava exposto o nome de outra vítima: um menino de apenas 8 anos à época dos abusos, cometidos pelo mesmo agressor.
“Eu era criança. Nunca imaginei que algo tão grave ficaria público por tanto tempo”, disse o jovem, que procurou o g1 após ler a primeira reportagem sobre o vazamento. “Quando vi a matéria, senti alívio. Finalmente alguém estava falando disso.”
Revitimização contínua
Após cumprir medida socioeducativa, o jovem passou anos em acompanhamento psicológico especializado. Hoje, trabalha como motorista de aplicativo e tenta seguir a vida, mas afirma que a exposição constante impede o fechamento das feridas.
“Não é algo que se supera. A gente aprende a conviver. O que não dá é continuar sendo exposto por um erro do sistema”, desabafa.
Casos semelhantes se multiplicam. Segundo a Defensoria Pública de São Paulo, adolescentes perderam empregos, abandonaram escolas e passaram a viver sob estigma após empregadores, colegas ou vizinhos encontrarem processos sigilosos ao buscar seus nomes na internet.
Em uma única região da capital, um serviço de medidas socioeducativas identificou 40 nomes vazados. O Núcleo Especializado da Infância e Juventude (NEIJ) já contabiliza mais de 50 casos confirmados, mas estima que o número real seja muito maior.
“É algo inédito. Esses processos têm camadas rigorosas de sigilo, e mesmo defensores precisam de credenciais especiais para acessá-los. Encontrá-los expostos em sites abertos é extremamente grave”, afirma Gabriele Estabile Bezerra, coordenadora auxiliar do NEIJ.
O que diz a lei
O ECA é categórico: processos envolvendo crianças e adolescentes devem tramitar em segredo de Justiça, e é proibida qualquer divulgação — total ou parcial — de informações que permitam identificá-los. A lei prevê sanções administrativas e multa para quem divulga ou permite a divulgação, inclusive em casos de republicação.
Para especialistas, a exposição pode gerar responsabilização civil e indenização às vítimas. “O segredo de Justiça existe justamente para evitar a revitimização de crianças e adolescentes”, afirma Ariel de Castro Alves, advogado e membro da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da OAB.
Plataformas e investigações
O Jusbrasil reconheceu falha operacional, afirmou ter removido centenas de processos e disse ter reforçado mecanismos de prevenção. O Escavador também admitiu a gravidade da situação e declarou que está apurando os casos.
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo sustenta que não houve vazamento em seus sistemas e atribui a divulgação a “meios externos”. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pediu esclarecimentos, mas, até o momento, a origem do vazamento segue indefinida.
Para a Defensoria, retiradas pontuais não resolvem o problema. “Sem identificar a fonte, os dados continuam reaparecendo. É uma violação grave, contínua, e ninguém assume a responsabilidade”, resume a defensora.
Enquanto isso, para as vítimas, o impacto é imediato e permanente. “Eu sigo em frente, trabalho, estudei, me formei”, diz o jovem. “Mas basta alguém digitar meu nome no Google para tudo voltar. É uma ferida que não fecha.”
Com informações do g1







