O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE
De repente, cessaram as chuvas amazônicas torrenciais. Já não cantam sabiás e bem-te-vis que as chamam do alto das mangueiras do Belém do Pará. À tardinha, é a vez da cigarra fazer o seu trinado. À noite, grilos substituem os sapos. Surgem longas praias em Icoaraci, Marudá, Chapéu Virado, Outeiro e Mosqueiro. Não são tão distantes, como antes me haviam dito. É para aqueles lados que, agora, os paraenses festeiros debandam em cima de caminhões animados pelo toque de violões, clarinetes e sanfonas. Por ali, as saias rodam ao ritmo de um tal carimbó. Lá estive no sábado último, mas voltei à tardinha, posto que ando de braços dados com a ciência e até já tenho um lema a seguir, elaborado por mim mesmo. Devo certamente fazer o melhor que posso e, assim, o pior não haverá de me acontecer.
Em números reais e representativos da vida acadêmica, são seis professores, vinte e oito alunos numa sala de nove por catorze metros, oito disciplinas: português, latim, matemática aplicada, matemática comercial e financeira, introdução ao direito, economia clássica, história do pensamento econômico e filosofia do direito. Chego às oito da manhã e almoço às doze. Volto às catorze e completo o ciclo diário às dezessete, quando passeio pelas ruas do centro e pelo cais, tomo sorvete de taperebá, ou graviola, ou cupuaçu. Grandes novidades, como o tacacá, do qual sou, já, adepto. Depois do jantar, invariavelmente às dezenove e trinta, subo e reviso, sem nenhuma pressa, as matérias ministradas durante o dia que passou. Durmo às dez da noite, isto, até quinta-feira, posto que na sexta todos os gatos são pardos.
Deixo muito claro que mesmo as horas do divertimento devem ser rigidamente controladas. Sou um rapazola a mais no meio da multidão de desconhecidos que, inclusive, até falam línguas estrangeiras. Busco tenazmente agarrar-me à disciplina e não largá-la, mas conservá-la, porque esta é a vida que Deus me deu. É lição tirada dos Provérbios, das Sagradas Escrituras.
É setembro de 1934. Passei a economizar o dinheiro que me mandam as tias do Ceará. Até que já juntei um bocado. Há seis meses, sou acadêmico da Faculdade de Ciências Jurídicas e Econômicas do Pará. Estou indo muito bem. Os graus que me atribuem os mestres estão entre os melhores. Fico sempre entre as médias oitenta e cem. O meu amigo de Portugal está agora dividido entre os negócios, que prosperam a olhos vistos, e Ignácia Morgado, a noiva portuguesa prometida há dez anos, ainda quando lhes eram vivos os pais.
Dia desses, então, durante a janta, ouvi da mesa ao lado um rapaz branco avermelhado e forte a falar sobre o longínquo Acre, uma terra de caudilhos e heróis que, um dia, fizerem uma guerra de quase dois anos apenas com o objetivo de serem reconhecidos enquanto brasileiros.
Subi aos meus aposentos e fiquei pensando no moço de olhos verdes e cabelos claros com as suas histórias e os novos comentários sobre o Território do Acre. Em sonho, vivo a aventura de subir os altos rios da Amazônia de parceirada com aquele cabra que canta samba e bate em caixinhas de fósforos. De manhã, começo a pensar nas possibilidades reais de ver a realidade amazônica de perto, tomar contato direto, conversar com os nordestinos que vivem por lá… Quem sabe, um dia eu viverei tal experiência que tanto me extasia…
Num desses sábados de sol, pela manhã, aparece-me novamente o moço que vive falando sobre o Acre. Aproximo-me, vagarosamente. Tiro-lhe o chapéu e faço-lhe as reverências devidas.
– Bons dias! O meu nome é Melchíades Ferreira de Lajes. Sou cearense do Baturité, estudante da Faculdade do Pará e tenho o maior prazer em apertar a mão de vossa mercê!
– Opá, opá! O meu nome é Garibaldi Carneiro Brasil, também estou batalhando na Faculdade do Pará, sou paraense, vivi no Acre e para lá um dia eu hei de voltar. Basta-me concluir os estudos por aqui.
Daí em diante, passamos a nos encontrar quase todos os dias. Ele, oito anos mais velho que eu, diz-se com maturidade para me encher as cuecas de conselhos às vezes úteis, às vezes fúteis, às vezes necessários. É um pândego e tira chacota com todos. Engraçado é observá-lo enquanto um dos poucos paraenses com mais de metro e setenta, e branco. Diz-me sempre ele:
– É a tal miscigenação!… Aposto que é! – E solta uma gargalhada que estronda e ecoa nas esquinas e no porto.
Vejo-o envolto nos sonhos da ciência jurídica, sempre, na Faculdade, como eu, mas com uma diferença: muito em breve ele concluirá os estudos e embarcará no primeiro navio que o levará a esta fantástica terra chamada Acre, terra boa para se viver e para se morrer, no dizer dele.
Cumprimentamo-nos cordialmente e até o acompanho, vez por outra, no tacacá de D. Amélia. Depois, ele sobe a Rua São Jerônimo e se vai para o convívio com uns parentes, no Umarizal, ou no Batista Campos, bairros um pouco afastados do centro da metrópole amazônica.
No último sábado, depois de um certo tempo sem comparecer ao que alguns chamam a confraria dos beatificados, no agora empório do Galego, eis que surge o Garibaldi, com um terno branco de linho amassado, rebengue numa mão e chapéu de massa na outra, tranqüilo, altivo, todo malemolente e cheio de prosa.
– Bom dia para quem eu já vi e para quem eu ainda não conheço também. Encurta a prosa, bota um bom vinho português e muita batata no bacalhau, ô Portuga!
Almoçamos à tripa forra ou beliscamos alguma coisa. Não importa. Sábado é sábado e não é dia de comer. Todas as vagas estão destinadas à cerveja Paraense e ao fantástico vinho do Porto, claro!
E haja prosa. Bom mesmo é ter a oportunidade de travar diálogo com pessoa tão lúcida e tão bem humorada, esta a maior virtude do grande amigo Garibaldi.
Conversamos bastante sobre a obra A luta pelo direito, de Rudolf Von Ihering, célebre jurista alemão, que dá ênfase à luta eterna do homem pela conquista e pela manutenção dos direitos que nos são inalienáveis, como beber, comer, vestir, habitar, ir e vir. Vem à baila, ainda, Etienne de La Boétie e o seu Discurso da servidão voluntária que vai de trechos leves a parágrafos densos sobre as formas que devem assumir a nossa defesa pelas liberdades individuais e coletivas.
Em companhia de mais dois comparsas, Rai-mundo Alemão e Leônidas Ribeiro, à noite, tocamos para as bandas da Ladeira do Presépio, em um carro de passeio, um Ford 1929, guiado por um chofé que atende pelo escandaloso nome de Pelópidas Cavalcante. Olhe!
Há pequenas vivendas de madeira ornadas com muitas flores. Há bebida, há comida e há sexo barato para quem vende e para quem compra. Mas já são três da madrugada e o Pelópidas – agora por mim alcunhado Panelada – está à nossa espera refestelado no seu Ford. É bom lembrar-me de que os deveres de católico fervoroso me chamam às onze da manhã, na Catedral da Sé, onde sempre leio a epístola evangélica de Paulo aos Tessalonicenses, ou outra qualquer, a mando do Padre Antão, agora meu conhecido, confessor e conselheiro.
Antes da vinda de Garibaldi Brasil para o Acre, em 1937, aos vinte e nove anos (dele), ainda participei de uma despedida régia regada a vinhos, cervejas, queijos e carnes de primeira qualidade. O gajo imponderável estava de partida, mas levava no peito um coração cheio de amor pra dar. Estava apaixonado. Num guardanapo de papel, ainda sóbrio, eu o descobri poeta de primeira grandeza. Ali mesmo, no arrepio da paixão flamejante, ele escreveu Melodia de amor. Depois eu a recolhi e guardei no bolso do paletó HJ. Dias mais tarde, então, das quatro estrofes, consegui entender as duas que seguem. É que a moça dos serviços gerais havia lavado e ensaboado o amor de todos os sonhos do amigo que já partira, definitivamente, para o Acre.
Nada mais me acalenta, me entontece
Que o colo perfumado da mulher amada
A brisa, o frescor do sol brando que anoitece
E versos na viola de pinho enluarada.
…
O cheiro morno das ervas que embriaga
A água doce da baía verde que cintila
Nada há de melhor que quando me afaga
A musa que aplaude da primeira fila.
…
Vivo um tempo de acontecimentos rotineiros. Não tenho muito a contar. Não apenas li, mas estudei as obras de Malthus e David Ricardo, clássicos da Economia. Só os pensadores me fazem pender o espírito, para um lado e para o outro, de conformidade com as circunstâncias, deles, é perfeitamente racional, como Kant, o filósofo pai do racionalismo dogmático e inspirador de Descartes, Leibniz e Espinoza, e do empirismo cético que tem como seguidores Bacon, Hume e Locke. Em síntese, para esses loucos espetaculares, o conhecimento seria fruto de uma simples faculdade, a razão, o raciocínio, a inteligência. Fácil, né? Nem tanto!
Nos outros três anos, depois dos clássicos da Filosofia do Direito acima, passei a beber em fontes brasileiras fantásticas, como Rui Barbosa, Tobias Barreto de Menezes, Augusto Teixeira de Freitas, Pontes de Miranda, Clóvis Beviláqua, Francisco Clementino de San Tiago Dantas, dentre outros não menos importantes.
Hoje, são sete de setembro de 1935. Desfilam estudantes e militares em homenagem ao Dia da Pátria. Os enfatiotados acadêmicos da Faculdade de Ciências Jurídicas e Econômicas do Pará estão sentados em cadeiras especiais ao lado do palanque das autoridades que discursam sob um sol abrasador. O traje é passeio distinto. Haja suor e orgulho. Estou me achando um lorde, como diriam as minhas tias velhas do Ceará.
O retratista Marabá Nascimento tira uma meia dúzia de fotos minhas e, não mais que de repente, cruzo repetidos olhares instantâneos e acho, ali mesmo, a musa da primeira fila da minha opereta sertaneja. Do lado de lá da avenida, portando um leque florido, vestido de seda branco e luvas da mesma cor, está uma moça magra, pálida e de cabelos negros que descem até quase a cintura. É Latife Al Kalid, por quem os meus sinos já dobram, apesar de não a conhecer. Pense numa mulher que está acima do conceito mais exigente de beleza! Não tiro os olhos de lá. Estou perdidamente enfeitiçado, encegueirado… Danou-se!
– Cadê a flor? Venda-me uma apenas ou todo o ramalhete. Não importa o preço.
– Tome essa rosa branca aqui, é de graça! – Foi a resposta de uma senhora de mocotós grossos, distinta, que levava umas flores que seriam entregues a alguém do primeiro escalão do poder.
Não é preciso ensaiar nada. A alma matreira já traz tudo de cor e salteado. Sigo o que me diz a inequívoca prudência e o que me aconselha o juízo. Como os antigos, é preciso que Deus me dê sorte, porque coragem eu já tenho demais, de sobra.
– À senhorita, ofereço uma rosa branca, com muita estima e respeito. – Disse eu à bela, com a voz quase trêmula.
– Fico-lhe muito grata e lisonjeada com tanta deferência. Muitíssimo obrigada. – Foi o que me falou uma boca emoldurada por lábios carnudos e pintados de um vermelho bem suave. Os olhos eram grandes e as sobrancelhas muito bem feitas. Não era mais alta que eu, talvez um pouquinho menor. Cheirava a Colônia Matinal, do Pará, e tinha o hálito doce das divas que apaixonam homens como eu sempre à primeira vista.
Tenho passado dias e noites sem dormir, ou em sonhos pecaminosos em cujo centro está sempre ela. Ontem recebi a resposta de um telegrama que lha havia enviado há três dias. Ela e a irmã Maida irão para a matinê do Cinema Olímpia, às cinco e quinze da tarde, e eu sou convidado especial. Ave Maria do céu! As pernas estão bambas. Preciso me controlar.
Estou a caminho do paraíso. Sinto-o em todos os odores, em todos os instantes do relógio da matriz, em todas as paisagens de todos os lugares por onde tenho andado. Penso agora como o pequeno príncipe, do Exupéry: se busco o significado da palavra felicidade, indispensável se torna entendê-la como recompensa e não como fim.
Todo ser humano busca e merece ser feliz, como agora o sou.
* José Cláudio Mota Porfiro é escritor.