No mundo de hoje, pós-moderno, rouba-se a mancheia, de todas as formas e de todas as maneiras. Em roda de samba essa perversão seria denominada de ladroagem em partido alto. O roubo vai desde taxas exorbitantes de juros oficial ou extra-oficial, pois que tudo é “farinha do mesmo saco”, ao afano de celulares descartáveis. O mundo de hoje é o mundo dos velhacos, dos trapaceiros, dos charlatões, infiltrados em todos os segmentos da sociedade.
Líderes de igrejas, por exemplo, anunciam soluções imediatas para problemas insolúveis, danam-se a vender, dia e noite, em nome de “Deus” seus amuletos milagrosos via mídia televisiva e a pedir dinheiro, de forma descarada, para se manterem no ar. Há, também, os políticos, com suas improbidades, mancomunados com os banqueiros protegidos pelo privilégio real. Seria demasiado longo, diria Prodhon (Filosofia da Miséria) enumerar todos os tipos de roubo que são cometidos contra o povo.
Deixando de lado os desabafos, o delito roubar está inserido no contexto de crime que suscita revolta no interior de cada ser humano. Roubar se constitui num mistério, um enigma para o pensamento; porquanto, qual é a origem do roubo, qual é seu fundamento? E por que o homem rouba o seu semelhante? Alguém pode responder essas questões? Uma coisa é certa, essas práticas nocivas estão inerentemente ligadas nas suas entranhas.
Talvez, sem escárnio, as confissões de Agostinho Bispo de Hipona nos ajudem a entender, sem com-preender, os motivos que faz essa gente, tão privilegiada pela vida, roubar. Quando jovem, diz Agostinho, quis roubar sem ter sido levado pela necessidade, simplesmente por indigência e desgosto do sentimento de justiça, por excesso de iniqüidade. Furtei, diz-nos ele, aquilo que eu tinha em abundância e de melhor qualidade. E era não a coisa cobiçada por meu furto, mas o furto, em si, e o erro que eu queria desfrutar (??). Esse desejo insaciável em desfrutar a incomoda condição de embusteiro, tem sua representação em quatro palavras latinas, definidas pelo próprio Agostinho: imago, o pensamento impuro na imaginação; cogitatio, quando se vai pensando no que é impuro; delac-tatio, quando nos deleitamos no que é ruim e, assentio, o assentimento, ou em outras palavras, consentimento, que no caso significa aptidão para roubar. Juntas, estas palavras, significam a comissão da fraude. É a própria engenharia do mal, diria Fellini, no seu O Casa-nova, com suas maquinações e perversas tramóias. Assim, de soslaio, parece que essa gente que rouba, do miserável ao rico, está presa a esquemas espúrios; frauda sem causa, pelo único prazer de fraudar. À luz dos princípios e leis da lógica, como arte do pensar, que mostra que a moral visa à edificação de um “reino dos fins”, a amoralidade desses “tais” se edifica na construção de um “reino dos meios”.
Portanto, pode-se dizer que toda essa loucura humana, bem parecida com as impressionantes ficções de Hollywood, horripilantes e arrepiantes, para não dizer apavorante, é produto duma nova filosofia de vida em que a verdade e os valores são relativos, dependentes de sua utilidade tanto para os indivíduos como para a sociedade. Conclui-se, igualmente, que as ações do homem que vive a roubar, estão representadas pela filosofia niilista de Nietzsche, filosofia que consiste na desvalorização dos supremos valores, na ausência de fim, na impossibilidade de responder “os por quês de tudo isso?”. Niilismo, por outro lado, que prega que o valor é um modo do ser. E as coisas valiosas, apreciadas e desejadas porque valiosas que se tornam norma ou regra de conduta, são por isso mesmo, fim ou razão de ser da conduta. O sentimento da ausência de valor emergiu, diz Nietsche, “quando se compreendeu que a existência em seu conjunto não poderia ser interpretada nem pelo conceito de fim, nem pelo de unidade, nem pelo de verdade; a existência deixou de ser verdadeira, é falsa. Não há mais razão alguma para imaginar um mundo verdadeiro. Deste modo, na tese Nietzsche, privado de fim, de unidade e de verdade, o mundo parece sem valor”. Ao mesmo tempo, essas reflexões filosóficas, sobre a vergonha, atual, da política nacional (vide caso Arruda de Brasília) à luz da filosofia nietzscheniana, não são para levar água ao moinho que range de desgosto pela vida; pelo contrário, deve-se atestá-lo expressamente, com base em exemplos de outrora, quando o homem não se envergonhava ainda da sua crueldade.
Mas essa atitude ilícita, em relação ao nosso próximo, a exemplo do mal moral, é mesmo um mistério, um enigma para o pensamento. Por isso, diria Jankélevitch, somos forçados a afirmar, por assim dizer, que somos, homens e mulheres, de estrutura delituosa por natureza, uma espécie de culpa original. Contudo, não haveria fraudes e roubos, se a existência não fosse profundamente desigual, desordenada ou caótica, enquanto sociedade organizada. Ocorre que, no dizer de Herbert Marcuse, a luta pela existência é originalmente uma luta pelo prazer. Esta luta pela existência, mais tarde, é organizada no interesse da dominação. A propósito, já dizia Maquiavel, toda dominação, é dominação política. Daí…
* Francisco Assis dos Santos é professor e pesquisador (de gabinete) em Filosofia e Ciên-cias da Religião. E-mail: assisprof @yahoo.com.br