O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE
Breves, ao largo, não parece mais que uma dúzia de casas cobertas de palha, uma delas com uma cruz no cimo. No alto de uma pequena elevação, há umas dez ou doze casas maiores de alvenaria, pintadas de branco, e uma outra igreja, ao que me dizem, um seminário ou um colégio dirigido por padres alemães onde remanescentes índios – ditos caboclos – são iniciados nas letras e, principalmente, no ofício religioso, com o objetivo bíblico de fazer chegar a fé católica aos recantos mais ermos do mundo, como os seringais do Alto Amazonas e Peru.
Eu, navegante. Republicano, o navio que me conduz a uma nova aventura já muitas milhas e léguas distantes do meu Baturité. A viagem é de subida, ou contra a correnteza do imenso rio que desce no rumo do Atlântico liso e moroso, parece-me, pacientemente.
Navegamos para o rumo leste. O destino final da viagem é Brasília, uma cidadezinha do Acre perdida na fronteira com a Bolívia. O comandante Josafá Matias, de sessenta e poucos, está já há mais de trinta anos na rota. Sabe tudo, dos furos, igarapés e paranás às desembocaduras de outros grandes rios, como o Xingu, o Tapajós, o Trombetas, o Nhamundá, o Madeira, o Purus, dentre outros tantos. A bordo, na primeira classe, viajam uns senhores com sotaque de Portugal. Um taifeiro me diz que um deles é Adão Galo, sócio do maior empreendimento seringueiro do Alto e Baixo Acre. No embarque observo que é um dos pro-prietários da firma A Limitada, de propriedade desses portugueses, conforme está escrito nos sacos e embalagens, toda a mercadoria que segue, desde gêneros alimentícios, como o macarrão e a jabá, até o querosene, sabão, tecidos, louças, utensílios da seringa, dentre tantos outros. Ao lado dele seguem o irmão Manoel e mais o senhor Belchior Costa, sócio nos negócios, além de outros portugueses de quem anotei os nomes. São João Lopes Mendes, Antonino Mortes, Tomás e Eurico Gomes Fonseca, todos muito próximos uns dos outros, falando mais ou menos sobre o mesmo assunto, os vastos seringais pertencentes à grande casa aviadora da cidade de Xapuri.
Todas estas pessoas estão muito absortas no papel que lhes cabe, de auxiliares de escritório a conselheiros, talvez, do empreendimento. Eu lhes cumprimento, mas apenas um ou outro faz um rápido e silencioso meneio de cabeça em resposta. É, realmente, gente muito importante, a começar pelas canetas tinteiros, ternos de algodão branco, chapéus de massa em tons abaixo do bege, sapatos pretos lustrosos, gravatas tipo borboleta, um ou dois de óculos pincenês, esposas e crianças que só saem dos camarins para as refeições, isto, quando não lhes vêm os subalternos aos aposentos com marmitas e água própria para o consumo da primeira classe trazida em tonéis de barro, grandes potes também chamados talhas. Todos estão mais ou menos confinados atrás de telas finas através das quais não passam os carapanãs ou outros insetos que podem causar doenças próprias do trópico úmido e muito perigosas, como a malária, a febra amarela, o sezão, o impaludismo, a tiriça, dentre outras.
Viajam conosco também três freiras cujas identificações também entram nos meus apontamentos. Elas pertencem à Ordem das Servas de Maria Reparadoras, vêm de Bolonha, Itália, e seguem para trabalhar nas escolas e hospitais de caridade de Rio Branco, Sena Madureira e Xapuri, no longínquo Acre. Uma ainda não fala a língua portuguesa. É Irmã Maria Alfreda Patrini. As outras duas são Irmã Hidelbranda da Pra e Irmã Petronilha Trinca, todas italianas. Dizem que pareço um jornalista, como o Euclides da Cunha, que trabalhou na demarcação dos limites entre o Acre e o Peru.
Delas só nos é permitido ver os rostos bem afilados e cândidos, bem próximos do perfil das mulheres da região do Lácio, as sabinas solteiras, aquelas que, ainda no período da fundação de Roma, foram roubadas por Rômulo, o primeiro líder romano. (Sem querer pecar e já pecando. O que diacho é que umas mulheres tão bonitas quanto estas têm que se meter por aquelas brenhas amazônicas com a finalidade de ajudar o próximo? Não deveriam ter-se casado, formado boas famílias bolonhesas ou ser artistas de cinema? Vá lá compreender! Deus é que explica!)
As irmãzinhas, como as tratam os portugueses, estão vestidas dos pés à cabeça de preto, apenas com uma grande gola branca de adereço e imensos rosários que nunca ficam quietos em suas mãos. Um tanto desconfiadas, conversam um pouco sobre a existência do Instituto Divina Providência e do Hospital Epaminondas Jácome, em Xapuri; sobre o Colégio Santa Juliana, em Sena Madureira; e sobre o Colégio São José e a Santa Casa de Misericórdia, em Rio Branco. Quanta vontade de ajudar! Agora as compreendo. Amam ao próximo como a si mesmas. Afinal, estão em missão tão difícil porque fizeram votos de obediência a Deus e aos humanos necessitados da sua caridade.
Há notícia de guerra no ar. Um político alemão de nome Adolf Hitler, combatente da Primeira Grande Guerra Mundial enquanto cabo de infantaria de guerra, agora ascende ao poder e, dizem, quer montar uma grande nação amparada por um aparato bélico jamais visto, que com-preenderá os limites de toda a Europa atual, dos Bálcãs à Escandinávia, chegando aos Países Baixos e à Península Ibérica, além da Inglaterra. Será o III Reich. Todos sabem de tais pretensões. Alguns têm medo. Muitos já estão apavorados. Falam do seu ódio aos judeus que devem ser exterminados para a supremacia da raça ariana, a superior, a mais forte, a mais bonita.
De um lado, há a possibilidade de alianças dos novos donos do mundo a Mussolini, o ditador da Itália, e a Hirohito, o imperador do Japão. No outro flanco estão a França, a Inglaterra, a Rússia, a Europa Ocidental e mais os países menores, como a Polônia, a Hungria, a Bulgária, dentre os demais. As nuvens européias andam densas demais, sombrias e da cor do chumbo utilizado na primeira guerra, entre 1914 e 1919, aquela comédia trágica que ceifou as vidas de centenas de milhares de jovens alemães de apenas quinze ou dezessete anos, que mal conseguiam carregar os fuzis. Uma lástima mal explicada apenas pela ambição humana.
Getúlio Vargas, o nosso manda-chuva, do jeito que é metido a macho, por certo escolherá um lado da confusão e, provavelmente, colocará à disposição de quaisquer dos aliados homens e navios brasileiros. Como no tempo da Guerra do Paraguai, muitos cearenses serão chamados para zelar pela reputação do Brasil que só lhes reconhece na hora em que o sangue dos caudilhos deve ser derramado, deve ser utilizado para lavar a honra dos brasileiros, seja onde for. Há de ser o que Deus quiser!
É dezembro de 37. A segunda classe é o mesmo miserê. Estar em excursão por este submundo quase rente a água do rio é como descer ao rés do chão da história desses lázaros modernos cuja sina imponderável é viver das migalhas que caem das mesas dos brasileiros mais ricos que sequer lhes reconhece a existência. Sabe Deus lá quanta história tem por aqui!
Hoje, almoçaram uma panelada, prático típico do norte e nordeste que mistura, cozidos, os bofes, as tripas, o bucho e os mocotós dos bois cuja carne fresca é servida à primeira classe. A mistura é um feijão sobre cuja água bóiam gorgulhos pretos cheios de proteínas, no dizer de um dos organizadores daquela horda miserável. Também tem um arroz grudento, com muito sal e cheio de farelos escuros, o que lhe empresta uma aparência horrível. A farinha é meio cinzenta, meio amarelada e mais se assemelha à poeira do sertão porque se levantado um punhado na mão à altura de um palmo do saco, ela voa pra muito longe. Há uns pratos brancos de esmalte cheios de hematomas pretos, o que é comum em velhas peças elaboradas a partir desse material. Alguns comem em pratos de alumínio bastante amassados, mas a grande maioria se serve em latas de goiabada ou cuias de cabaceira, muito habituais entre os paraenses. Dificilmente se vê uma colher.
Talheres, só lá em cima, para a burguesia de Xapuri do Acre. Cá embaixo, todos comem com as mãos. Juntam-se os dedos, pega-se a comida à base de pirão de água com feijão e, amassando a mistura, são feitas umas bolotas meio alongadas – os tais capitães que, se bem cuidados e temperados com cheiro verde, cebola de palha e alho, têm um paladar bastante apreciado não apenas pelos mais pobres de cá e de lá do sertão, mas pelas gentes ricas cujas crianças se regalam com tal iguaria…
A péssima qualidade da bóia deve-se aos preços bem mais em conta praticados em Belém, nos armazéns do Cais do Ver-o-peso. Comida de primeira qualidade fica para os portugueses da primeira classe que têm muito com o que pagar pelos usos e abusos. O pessoal da terceira classe, aqui denominada a reborréia, deve comer mesmo é gorgulho e palha de arroz torrada, o que não tornará mais barata a viagem, muito pelo contrário, torná-la-á até mais cara porque será paga, regiamente, tostão a tostão, quando da chegada nos seus infelizes destinos, nos grandes seringais dos altos rios.
A bem da verdade, hoje em dia qualquer doido menos varrido já entende que, do jeito que for, para onde a banda tocar, no rumo que der, não há como escapar. Dá na mesma: o rico sempre sai ganhando. Agora é que lembro. No João Miguel, o livro de Rachel de Queirós, de 1932, a mensagem acima está expressa de fio a pavio. Para o pobre, é como o ditado sertanejo: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
A viagem de cachorro feita pelos futuros seringueiros é paga a preço alto, como se o coitado comesse o caviar francês e o vinho português da primeira classe. Tomás Gomes Fonseca, um dos lusitanos, o mais risonho e até brincalhão, reservadamente, fez-me comentário bastante lúcido num sotaque carregado:
– Embora a minha atividade não seja exatamente o comércio extrativista, digo a você que a empresa precisa ganhar a partir do momento em que o seringueiro sai do nordeste. O investimento dos patrões é muito alto e a contrapartida precisa ser assegurada desde o início da operação. E, na chegada ao destino final, o homem vai comprar toda a alimentação e todos os seus atricílios de trabalho sem dinheiro. É espingarda, cartuchos, pólvora, chumbo, terçado, lamparina, poronga, querosene, víveres dentre outros. O pagamento será feito daí a três ou quatro meses, quando as primeiras peles de borracha forem pesadas… E então, já pensou se o homem morre de maleita, ou de picada de cobra venenosa, ou comido pela onça. O empreendimento não pode ter nenhum prejuízo
– É certo, sim senhor! – Foi o que respondi. – Mas o tratamento parece-me um tanto desumano.
Depois fiquei a pensar no quanto essa comandita que explora o negócio dos seringais engana os sertanejos analfabetos. Os gerentes e patrões anotam tudo a lápis, o que pode ser apagado a borracha na hora do acerto. O seringueiro pode ter quatrocentos réis de saldo mas, por não saber ler um ó sentado na areia, o safardana diz que o que está ali escrito são apenas quarenta réis. Conforme pressenti, se o lascado tirar saldo maior, corre até o risco de morrer tocaiado a mando do seringalista; isso, é claro, porque tem gente pra tudo que é de ruim nessa vida.
Muito engraçado é que, em seguida, o gajo bem simpático deixa de falar sobre o assunto e passa a me contar anedotas sobre os portugueses do Alentejo, pessoas bem simplórias que cometem gafes de todos os tipos.
– Eu nasci no Chiado, tradicional bairro lisboeta, mas, em Xapuri, chegou um alentejano de nome Luís. Ele trajava sempre terno de linho bege claro bem caprichado no corte, usava chapéu de massa, sapatos, meias e gravata e, no dia da sua chegada, resolveu ir ao cinema de propriedade do meu irmão, o Eurico. Lá, nas primeiras cadeiras, já estava o Manoel, um primo já bem instalado na cidade. Ele não pode entrar porque a película já houvera iniciado e, como o cinema era mudo, qualquer barulho podia atrapalhar a tocadora de piano, a senhora Olívia Campos, que devia seguir o enredo, a trama. Ele resolveu então ir para o pequeno apartamento, na Rua Coronel Brandão, onde era hóspede do parente. Lá chegando, viu um mosquiteiro atado sobre uma rede de punhos e sentiu que aquele seria o seu lugar de sonho. Ele passou então a rodear a rede à procura da porta por onde entraria para dormir. Deu umas trinta voltas e findou por ficar cansado de tanto voltear. Lá pelas tantas, o primo, depois de jogar um carteado no Bilhar Clube e tomar uns guaranás, chegou em casa viu o pobre Luís acocorado ao canto da parede, em sono profundo. Depois de acordado, ele confessou que não tinha conseguido dormir na rede porque não achara por onde entrar no mosquiteiro.
* José Cláudio Mota Porfiro é escritor.