O Acre é atualmente um dos principais corredores para a entrada de drogas no Brasil. São quilos e mais quilos de entorpecentes que atravessam a fronteira e tem como um dos destinos os morros e favelas cariocas. A realidade lá os acreanos conhecem um pouco por meio de filmes como “Cidade de Deus”, “Tropa de Elite” e “Última Parada 174”. Produções que passaram para o cinema o barril de pólvoras que são os morros do Rio de Janeiro, dominados por facções sustentadas pelo tráfico e consumo de drogas.
José Mariano Beltrame é o homem responsável por coordenar toda a política de segurança pública do Rio de Janeiro. Na semana passada ele esteve em Rio Branco para ver de perto o que o Acre tem feito para tentar coibir essa passagem de drogas e como o Estado é afetado, além de conhecer as iniciativas de sua colega Márcia Regina para melhorar o sistema de segurança pública local. Com muito esforço Beltrame conseguiu recuperar, em partes, o poder do Estado em áreas que antes estavam sob o domínio dos traficantes.
O segredo, diz ele, é o poder público chegar com um “tsunami de ações sociais” para tirar da criminalidade o domínio nas comunidades. O Rio de Janeiro tem feito isso por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), aliado à efetivação de uma política de segurança que segue os mesmos métodos da iniciativa privada, como focos e metas a serem alcançadas por batalhões e delegacias com o pagamento de gratificações aos que cumprirem os objetivos.
Na última quinta-feira (15), Beltrame conversou com A GAZETA.
A GAZETA: O Rio de Janeiro ainda se recupera de uma das piores catástrofes de sua história, agravada pela omissão do Estado. Após a recuperação, qual deve ser o papel do poder público para evitar que isso se repita?
Beltrame: Sem dúvida essas tragédias são frutos do assistencialismo, de uma política demagógica e populista. Quanto às políticas de segurança temos estabelecidos metas e focos às delegacias e batalhões nas áreas mais conturbadas, com uma ocupação permanente da polícia, o que tem nos permitido obter resultados satisfatórios. Mas muito ainda precisa ser feito. A nossa polícia tem um efetivo ainda da década de 1980. Não houve planejamento para recuperá-la. A metade da frota de viaturas quando assumimos estava parada. Neste um ano e meio de atuação planejada na segurança constatamos que este [a adoção de metas] é um caminho sem volta se quisermos melhorar a qualidade de vida não só nas favelas como também em toda a cidade.
A GAZETA: O governador Sérgio Cabral tem tentado reverter um quadro perverso que herdou na segurança pública do Rio de Janeiro. A estrutura da polícia sofre com as mazelas da corrupção. É possível reverter este quadro?
Beltrame: Não podemos ser demagógicos em reverter o atual quadro da noite para o dia, o Rio de Janeiro está assim há décadas. O Estado foi leniente e a sociedade tolerante com isso tudo. Mas precisamos reverter a situação. A adoção de medidas que são usadas na iniciativa privada dentro do serviço público, adotando foco, meta e controle, é um passo para isso. Trabalhar na recuperação salarial é outro fator. A corrupção policial também é fruto deste descaso histórico no Estado, por isso não pode ser atribuída somente aos salários baixos, pois nesse país tem muita gente ganhando bem e que se corrompe. Temos oferecido gratificações aos policiais, mas que ainda estão longe do ideal.
A GAZETA: Como funcionam as UPP (Unidade de Polícia Pacificadora)? Elas podem ser usadas em outros estados?
Beltrame: Acredito que a UPP pode ser aplicada em qualquer lugar do mundo, levando-se em consideração, claro, as diferenças de cada região. Definimos 100 áreas no Rio de Janeiro com altos índices de criminalidade e decidimos ocupá-las de forma permanente. Antes a polícia ia a esses locais, fazia o trabalho e saia. Os resultados eram trágicos, com policiais, bandidos e pessoas inocentes perdendo as vidas. A partir desse mapeamento começamos toda a reformulação da forma de policiamento, preparando os policiais para essa nova fase. O resultado disso é uma relação harmoniosa impensável até bem pouco tempo entre a polícia e a comunidade. Posso dizer que crimes violentos nessas áreas despencaram a zero.
A GAZETA: Um dos grandes problemas que afeta seu Estado é o tráfico de drogas. O Acre é um dos corredores por onde passa a droga que abastece morros e favelas cariocas. Como o Brasil pode fechar suas fronteiras para evitar que isso aconteça?
Beltrame: Eu Poderia dizer que esse é um assunto que não me diz respeito [a segurança nas fronteiras]. Mas tenho dito no Rio de Janeiro que é necessário que se controle as fronteiras; é uma ação urgente. Sei que é um trabalho difícil, sou policial federal e já atuei em áreas limítrofes. São 16 mil quilômetros de fronteira. Defendo esse controle mais rigoroso não só pensando no meu Estado, mas em todo o país, pois todos os brasileiros são afetados com as drogas e armas que entram livremente por estas regiões desguarnecidas. Defendo uma ação conjunta, unindo todas as instituições, para resolvermos o problema das fronteiras.
A GAZETA: Hoje no Brasil cada Estado tem sua política de segurança pública. Não estaria na hora de o país ter um padrão de enfrentamento à criminalidade, mas respeitando as características de cada região?
Beltrame: Eu acho que é importante, sim, termos uma política nacional de segurança pública com a criação de um órgão federal. Para que esse órgão tenha uma atuação eficiente é preciso que ela mantenha uma relação concreta com os estados. O Brasil vive uma diversidade em todas as áreas e é preciso respeitar essas particularidades e autonomia dos estados. O que serve para o Acre não serve para Santa Catarina e vice-versa. Sou a favor da integração de uma política de segurança para o Brasil, diminuir a burocracia estatal que emperra a execução de tantos projetos pelas secretarias estaduais. São dois ou três servidores em Brasília para atender todo o país. Eu acho que os secretários [de segurança] têm feito sua parte, mas cabe ao Ministério da Justiça oferecer a estrutura e fazer valer os projetos desenvolvidos por ele próprio.
A GAZETA: Aos poucos os governos passam a adotar o modelo mineiro de gestão na segurança pública, baseado em metas e planejamento. Esse é o sistema ideal para o país reduzir os índices de delitos?
Beltrame: Estou convencido de que, se o serviço público não utilizar as mesmas ferramentas da iniciativa privada, ele estará fadado ao fracasso. Não é possível termos uma delegacia com média de 300 ocorrências por mês e ter somente 15 inquéritos instaurados. Os servidores públicos precisam se adaptar a essa nova realidade. Na Polícia Militar tínhamos estruturas internas de manutenção do poder, e isso não pode mais existir. Será que numa empresa privada um coronel, capitão ou delegado teria todas as regalias que estava tendo? Não é possível em pleno século 21 os batalhões da PM não estarem interligados em rede. Quinzenalmente comandantes e delegados apresentam os resultados de suas ações e analisamos se as metas foram alcançadas.
A GAZETA: Como fazer a sociedade conceber de que essas políticas são de resultados a médio e longo prazos, geralmente numa área que exige-se respostas imediatas?
Beltrame: Sempre digo que segurança pública é um bem subjetivo, é um sentimento. Como preparar a sociedade para essa nova fase? Com atitudes. Se eu implantar esses métodos e sistemas e os resultados surgirem, a população vai adquirindo uma cultura de que isso funciona. As pessoas não confiarão em sua polícia por decreto, mas por atitude. Implantar a UPP no Rio de Janeiro não foi fácil, mas hoje ando tranquilamente em qualquer área ocupada conversando com os moradores. Mas isso só foi possível com persistência, e criando na comunidade repetições de fatos que a levassem a ter a cultura de que agora o Estado está ali.