O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE – CAPÍTULO XXII
Amargam-se as derrotas, mas não se comem as vitórias, apesar do gosto deveras saboroso, inigualável. Indo mais na profundidade, lembro o Goethe que afirmava que, de um modo geral, o homem tem que, obrigatoriamente, andar às apalpadelas, tateando mesmo, como se estivesse na escuridão real, uma vez que não sabe de onde veio, nem para onde vai, conhece pouco do mundo e menos ainda de si próprio. Em verdade, veio para a vida perdido e voltará a esmo, sem dúvida alguma.
Já no início da minha peregrinação amazônica em busca de resultados e fama, ainda nos primeiros dias de Belém, parti do princípio segundo o qual a ninguém compete – só única e exclusivamente a mim – a busca pelos melhores dias a que todos ansiamos. Apesar do meu compromisso de moço casado de pouco tempo, depende apenas desta esfuziante alma em início de carreira o sucesso tão almejado e colocado em prática desde os tempos de menino, quando cortava o vento no lombo do meu cavalo Rocinante, comendo pelas ventas a poeira das estradas e caminhos das cercanias esverdeadas da serra do Baturité.
Não bajulo a quem quer que seja. Busco tão somente achegar-me destes ases de um baralho bem brasileiro, senão mais lusitano, com os quais possa aprender alguns rudimentos da vida na selva, em meio ao caos das relações humanas, onde o homem se confunde com o bicho e vice-versa, isto, porque tenho observado uns homens, mulheres e crianças, à margem do rio e da história, quase nus, vestidos em trapos, que avistamos, vez em quando, do tombadilho da embarcação. Segundo ouço do mestre comandante, são os ditos caboclos, exímios pescadores de caniço e linhada, originários da mistura racial ou étnica entre o elemento índio e o sertanejo que, na maio-ria dos casos, não conseguem aprender muita coisa além de caçar e pescar. Os costumes desses miscigenados, ou pouco mais civilizados que os índios, ainda são realmente bem próximos da fase mais primária do ser humano, sobre o que tratarei em ocasião mais oportuna.
Constato, para o meu espanto, um outro fator histórico cultural bem significativo, em termos sociais, e próprio das gentes do baixo e do alto Amazonas, até onde se estende os limites deste gigante adormecido a quem damos o nome de Brasil.
Em conversa com o respeitável Dom Tomás Gomes Fonseca, assim chamado por mim de agora em diante, sou informado de que os ditos turcos chegaram à região um pouco antes da maioria dos portugueses e ajudaram a plantar a cidadezinha do Xapuri, hoje bem enfeitada e aconchegante, com teatro, clube, bares, restaurantes, praças arborizadas e ajardinadas, cinema, hospital, comércio forte, associação comercial, escolas, inclusive a das freiras católicas, dentre outras coisas mais.
Os turcos, então, não são turcos. Eu próprio, depois de alguns anos residindo no Acre, desde os tempos do Seringal Boca do Lago, não conheço nenhum turco. Conheço, certamente, sírios e libaneses. Dentre os sírios de Xapuri, nascidos nas montanhas das proximidades de Damasco, Síria, há que dar destaque a três famí-lias: os Fadul, os Salim Abouache e os Akel Hadad. A primeira é liderada por uma matriarca que nunca falou uma palavra sequer em português. É a senhora Sarah Fadul. A segunda é comanda por Touffic Salim, que trouxe de Belém uma mesa de snooker bem grande, de tampo de mármore, de onde tira boa parte do sustento dos seus. A terceira é liderada por Aziz Hadad, homem alto, forte, carrancudo, que dificilmente alguém haverá de um dia notar um sorriso no semblante austero e enigmático, como nas duas outras personagens; estas, certamente, seqüelas psicológicas naturais que atingem as pessoas que nascem numa terra rochosa e íngreme, onde as guerras civis e religiosas marcam todas as vidas que, de repente, se vêem divididas e obrigadas a partir não se sabe para onde, como também não se quer saber sobre quem fica morrendo de saudades, sim, porque eles também sentem saudades.
Na Amazônia, a ocupação mais comum entre os nascidos na Síria é navegar pelos imensos rios vendendo sempre, segundo eles, novidades. Da mercadoria que segue na embarcação, constam itens que vão da lamparina fifó ao tecido, aqui chamado fazenda, ou chita, linha, agulha, pentes, perfumes de cheiro apurado, pó compacto e brilhantinas, dentre uma infinidade de bugigangas e utilidades talvez domésticas. São os mascates que, na falta de dinheiro entre os seringueiros, deixam o seu produto de pouca qualidade a altos preços em troca de borracha, castanha, couros e peles. Sobem os rios com os batelões e canoas carregados de artigos menoscabados e, na descida, vão recolhendo o que é produzido pelos seringueiros, numa afronta direta ao empreendimento dos seringalistas que deixam de comprar a borracha a preço baixo, revender víveres a preços escorchantes e faturar em cima do que lhe é pago pelas casas aviadoras, a exemplo de A Limitada, dos portugueses de Xapuri, que trazem o sortimento do seu negócio a partir de Belém e Manaus. Em suma, todos ganham, menos os trabalhadores da seringa que morrem de tudo um pouco a cada dia que Deus dá.
Dentre os libaneses, oriundos das cercanias de Beirute – onde foi fundada a segunda universidade mais antiga do mundo – a cordialidade e o sorriso franco e aberto é marca principal. Demonstram viver bastante felizes. Dão gargalhadas ou sempre estão a sorrir simpaticamente. Eles já não navegam ou nunca navegaram pelos rios, como os brimos da Síria, mas estão, já, lá em cima dos barrancos, em lojas muito bem montadas, usam terno e gravata, lêem aqueles jornais de letras escritas no sentido vertical, cumprimentam a todos efusivamente, riem e se fazem compadres e comadres dos nordestinos que lhes servem nos afazeres domésticos e comer-ciais, dentre outros, nas cidades.
Um destes, grande amigo de Dom Tomás, de nome Touffic Koury, tornou-se fazendeiro lá pelas imediações do Xapuri. Tem uma fazenda bem administrada, muitos bois e cavalos tratados com bastante esmero, os pastos bem cuidados e uma casa grande e vistosa, estilo chalé, em meio a um arvoredo, no alto de uma pequena elevação nos arredores da cidade, próximo ao antológico Rio Acre.
Então, num desses dias modorrentos de verão, logo que por ali chegou o Banco da Borracha, o homem foi buscar um dinheiro com o qual pagaria os trabalhadores (batedores de campo; cortadores das ervas daninhas em meio ao pasto) do seu empreendimento altamente rentável.
Era sábado. Então, o turco montou um burro desses grandões, chamado Piolho e, já de volta, pelo fato de o saco de estopa em que trazia o numerário estar mal amarrado à cela do animal, desprendeu-se e a dinheirama ficou no meio da rua. Atrás vinha a pé um compadre dele, conhecido por Vavá. Este, assim que viu o incidente, juntou o bendito saco e saiu correndo e gritando pela rua afora atrás de fama e reconhecimento de onde jamais poderia esperar que viesse:
– Seu Touffic! Seu Touffic! Pegue o seu dinheiro que caiu na rua!
E o turco nem olhava pra trás… E haja galope do Piolho e o Vavá desembestado comendo poei-ra. Resultado: ofegante, quase a morrer sem fôlego, chegou dez minutos atrás do burro. Os cachorros da casa já o queriam comer vivo, quando enfim conseguiu balbuciar:
– Seu Touffic, o seu dinheiro, homem de Deus!
– Dê cá! – Foi o que o rico disse.
– Vixe! O senhor não vai me dar nenhum agradinho?
– Peraí!
Touffic foi ao curral, cortou três metros de corda boa de cânhamo seco e trouxe:
– Tome. Isso é pro senhor se enforcar, seu abestalhado!… Se tivesse ficado com o dinheiro, nunca mais passaria fome nessa vida… Vá embora!
E o Vavá foi, sim, para casa contar à esposa Ernestina o quanto o velho Touffic era birrento. E eu, depois, fiquei a pensar no péssimo exemplo que fica a partir de uma atitude em que a boa ação é interpretada enquanto estultice, burrice da grossa.
Abdon Elias Kamel, segundo Dom Tomás, é um pândego, apesar da origem síria. Diz coisas bastante engraçadas, mas não ri das suas anedotas sempre bem humoradas. Corta cabelos à máquina de uma boa parte dos mais velhos e destacados da sociedade local… E conta histó-rias do tempo em que vivia no Oriente Médio.
Num desses dias não tão belos, Abdonzinho Kamel, como é carinhosamente tratado, comeu, à noitinha, uma dessas iguarias engorduradas e, por isto, pesadas, muito próprias da região, talvez um jabuti ou um tatu ao leite da castanha, ou um ensopado de carne de porco, ou, quem sabe, uma boa buchada de carneiro, e passou mal. Também, pudera, segundo o meu interlocutor hoje bem humorado, o homem comia um bezerro no almoço e dois litros de açaí acompanhavam a janta sempre muito farta.
E as dores aumentavam e os gemidos se fa-ziam ouvir pela vizinhança, até que o turco teve a feliz idéia de tomar um efervescente da moda, e o tomou, sem pestanejar.
Dois segundos depois, o moço começou a escumar pelos cantos da boca e, já em pânico, gritou para a filha que lhe era a única companhia já nesses idos da vida:
– Corri aqui mi filha, a cacêta tá na guela! Sucorro!
Como se fora um comprimido, ou pílula, o bom Abdon tomara o Alkaseltzer, quase sem água e partido em alguns pedaços, pelo fato de não saber como aliviar-se das dores que tanto o afligiam.
Muitos desses estrangeiros não me fogem à memória nem às anotações, como o sírio Farid Abdalah, ex-regatão, de um humor insuportável, com um catarro eterno no peito e umas indefectíveis sandálias de couro que faziam um barulho esquisito, até depois de morto, pelos corredores da vivenda elegante que comprara por trás da maçonaria, com a devida vênia.
Um outro amigo do meu bom Tomás é o libanês Farizaire, sempre agradável, ele e os filhos endinheirados e sorridentes. Alfredo, tio dos meninos Zaire, também é comerciante de miudezas e, pelo fato de estar sempre fazendo promoções para a venda dos seus artigos, o chamam Titiliquida, porque o titio liquida tudo mesmo, mas vive muito bem de vida, quase como um fidalgo.
Um outro batrício tem por nome Jorge Eluan, fala alto e bem explicado, mas, muito bem aclimatado à terra, diz palavrões impublicáveis. Dentre os libaneses, o mais educado e gentil de todos é o Gatasse Kalume, um homem de fino trato, realmente; casado com uma mocinha de nome Carmem, filha de turcos de Belém e aparentada de Faride, uma bonita vizinha da família da minha esposa. Sobre este nobre Gatasse, Dom Tomás, sabiamente, arrotando filosofia, enquadra-o num aforismo segundo o qual a elegância é a arte de não se fazer notar aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir. Assim é ele.
Os irmãos Abrahão Felício são também comerciantes e têm embarcações, como os portugueses Galos e Costas, como os Zaires e os Kalumes.
Há ainda um libanês bonachão e forte de feições chamado Jamil Bestene, sobrinho de Jorge Eluan. Há um sírio carrancudo de nome Andrias Cher Sarkis e uns outros tantos cujos nomes estão devidamente anotados em minhas cadernetas para futuros contatos.
* José Cláudio Mota Porfiro – Este é o 22º capítulo do romance O inverno dos anjos do sol poente. Os demais podem ser acessados através do ww.claudioxapuri.blog.uol.com.br