Ícone do site Jornal A Gazeta do Acre

Homens de dois tempos

Passei boa parte de toda uma vida quase completa vendo e ouvindo e lendo e convivendo com algumas histórias bem feitas por gente da minha estirpe. Os nossos ancestrais fizeram que fizeram, e fizeram tão bem feito que findaram por construir uma terra hoje digna, já, dos aplausos dos povos ao redor do mundo. Quem diria?!

É a partir de algumas iniciativas de acreanos que – pelo menos nós – não haveremos de morrer sem fôlego ou de inanição. Já há pouca fumaça nos meus pulmões e nos meus horizontes antes tão turvos. Larguei ou me proibiram também de fumar, para a felicidade geral da nação lá de casa. O Acre é a terra prometida onde a sustentabilidade praticamente nasceu.

Aí pelos doze anos, já adulto, vivia ouvindo as conversas sérias dos mais velhos, apesar de dois tios meus, cearenses, de quando em vez contarem tiradas sempre hilárias, e no mais das vezes, picantes, para os risos forçados do meu pai, que não era dado a anedotas… E já dava para notar pelas feições azedas ou toscas ou rudes de um cabra que não era lá de rir por pouca coisa.

– Ô vidinha mais ou menos, mais pra mais do que pra menos. – É o que dizia o Edgar, o tio mais sacana do mundo.

Eles falavam muito das relações entre seringalistas e seringueiros. Os patrões, meio ricos, eram, na sua maioria, dados à chantagem, à burla e à enganação, isto, até os anos cinqüenta, conforme Vovó Mariinha. Daí em diante, as ligações já não eram tão inamistosas.

Nos anos sessenta, então, ainda bem garoto, conheci o Solón Maia, arrendatário do Seringal Albrácia, de quem todos falavam muito bem, tendo em vista o comportamento marcadamente ético, compreensivo e até dado a favores. Andei pelo barracão dele  –  a sede do seringal  –  aí por essa época. Alguns diziam que o tempo da borracha não tardava a ter fim. Que estavam chegando uns forasteiros com a idéia fixa de criar gado em vastas fazendas implantadas a partir da derrubada de árvores, inclusive, seringueiras. Falavam também dos preços irrisórios alcançados pela borracha que há muito havia perdido a primazia para os plantios asiáticos do Ceilão e da Malasia, dentre outros temas.

Queriam vender o pouco que tinham para comprar casas em Xapuri. Lá plantariam e colheriam para o sustento das famílias, como se fosse possível. Poucos desses projetos deram certo. A maioria veio para a cidade viver das migalhas caídas das mesas da elitezinha que, à época, também já não era lá essas coisas.

Entretanto, uma conversa me chamava mais a atenção. Era sobre a vinda dos seringueiros nordestinos para a implantação e exploração dos seringais amazônicos. Era muito sofrimento.

 Numa síntese apressada, observo o grau das dificuldades a partir do momento em que o sertanejo, ainda no nordeste, era chamado a vir para o Acre catar dinheiro com um cambito. O coitado acreditava na conversa do agente preposto dos seringalistas, lá, e começava aí o suplício. As passagens, ainda no porto de Fortaleza eram grátis. Mas quando o navio atingia mar alto, a verdade era revelada:

– Ora, cabra! Como é que tu vai querer viajar de navio, comendo bebendo e dormindo, de graça? Acabei de receber carta do patrão. Ele tá é puto. Todos vão pagar com serviço, no corte da seringa. Quem não topar é porque não é macho e pode pular fora do navio e voltar pro Ceará a nado.

Contado isso por Abdoral, um compadre do meu pai, com lágrimas nos olhos, era de cortar o coração, uma vez que, segundo ele próprio, no Ceará, nunca tinha visto um rio que lhe conseguisse afogar mais que os pés. Como iria nadar?

– Tava era lascado! – Exclamava o sertanejo calejado pelas idas e vindas por esse mundão de meu Deus.

A comida era uma espécie de lavagem de porco. O arroz tinha muita casca que, depois de cozida, ficava preta. Era um chibé bem ruim. O feijão tinha bastante gorgulho, segundo uns afortunados, fonte rica de proteína. A farinha era uma poeira que voava ao vento. Não havia pratos. Comia-se em latas de goiabada, e com as mãos. Crianças morriam de doenças tropicais e os corpos eram atirados nos rios. Mulheres e homens tinham piolhos, pulgas e até carrapatos. A promiscuidade grassava nos porões desses novos navios negreiros. Gente não era gente. Gente era bicho mesmo.

O nordestino que por aqui chegava com mais sorte ou esperteza abria seringal, ficava rico e passava a tratar os demais com uma desumanidade sem tamanho, como se não viessem da mesma origem. Mandava surrar os ditos desordeiros com couro de umbigo de boi, até se mijar. Eu próprio ainda cheguei a ver um tronco em frente ao quartel velho, em Xapuri, Rua Batista de Morais, onde os seringueiros desobedientes eram surrados.

Aí o sujeito era jogado numa colocação onde só havia um papiri (casinha de palha de pau-a-pique) sem assoalho. No verão era o pium de dia e a carapanã de noite. No inverno, a umidade noturna da mata. A alimentação era parca. O seringueiro morria e, muitas vezes, só lhe era encontrado o corpo, já putrefeito, dias depois, quando o comboieiro vinha trazer mantimento e buscar borracha ou sernambi.

Com o meu tio avô Teófilo Porfiro aconteceu que, chegado ao Seringal Lua Cheia, Rio Xapuri, ainda muito moço, percorreu quatro horas de viagem madeira adentro, com um sujeito em cima de um burro, à frente dele, fumando um porronca e, aos gritos, mandando que ele se apressasse. O baixinho Teófilo guardou por poucas semanas a humilhação e, na próxima oportunidade, meteu-lhe a lambedeira a três dedos abaixo da última costela. O cabra não morreu na hora, mas foi-se meia hora depois. Passados dois anos da fuga, ele já tinha emprego de ajudante na firma do Américo de Morais, Seringal Palcemar, próximo à fronteira com a Bolívia, para a prevenção dos possíveis problemas com a Justiça que pudesse vir a ter, mas que nunca aconteceram.

Na chegada à colocação o tal Protásio deu uns empurrões no Teófilo e lhe disse:

– Aí dentro desses dois sacos tu tem tudo para viver por um mês. Depois disso, tu volta na margem (sede do seringal) para buscar mais. Mas não vai comer muito. Fica com essa espingarda e mais vinte cartuchos. Tu mata uma imbiara, come e economiza a tua ração… Ah, sim! E tem umas bichanas que de dia esturram e, de noite, dão uns miaus de fazer gelar o sangue de qualquer cabra frouxo como tu. Resolve o teu problema com elas. Dorme atrepado no oitão da casa. Acende o fogareiro e jogue merda no fogo que elas nem chegam perto.
E deu-lhe mais um empurrão e um chute na bunda:

– Vai, caba da peste! Se a onça não te comer, tu vai ter que comer a onça, no fio do terçado ou no chumbo quente!

Ele não sabia com quem estava mexendo, como não sabia que a alma já havia sido encomendada a Deus. Fi do cão!

Para os mais novos e também para os desinformados, é preciso que lhes diga a medida exata dos esforços dos seus avós. Hora de acordar, três e meia da manhã. O fogão de lenha, o fogo com graveto e cernambi, o café parco, uns dois punhados de farinha seca na boca, ou um pedaço de macaxeira, e só. Não havia frutas. Às quatro da manhã, poronga na cabeça, já estava na estrada de seringa na primeira fase do seu trabalho, o corte. Às onze ou onze e pouco, vinha em casa, comia carne seca ou enlatada, bebia uma água qualquer e voltava, agora, para colher o leite. Na volta, ia pro mato cortar cavaco. Fazia o fogo no defumador e envenenava os olhos com a fumaça do cumaru de cheiro, a árvore. E depois… Depois, morria, porque não há fígado que agüente um repuxo desses. Fazer derrubada, broca, botar roçado de adjunto, plantar, colher, beneficiar, isso foi só depois, quando, enfim as relações ficaram um pouco mais humanas.

E olhe o que é a história em dois tempos.

Os de ontem fizeram sacrifícios incomuns, morreram a cada dia que Deus dava vitimados por doenças esquisitas ou ceifados por felinos sanguinários ou abatidos por répteis peçonhentos… Meu Deus!

E é aí que me vem à mente um aforismo que prega que, quanto mais difícil, penosa e dura é uma etapa da vida, tanto mais se obstinam os homens, tanto mais a querem. Assim foi como esses bravos iniciaram a construção do Acre. A eles, aos nossos avôs e avós, nós devemos tudo, inclusive, homenagens tão simples como esta. Na verdade, lembrando a fímbria e o caráter dos cearenses lá de casa, notadamente o bom Gibiri, meu pai, afianço-vos que é a dificuldade que atrai o homem de caráter porque é abraçando-a que ele se realiza… Que Deus o tenha!

E, hoje, corre o ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2010. A convite do Sabino Cordeiro, meu amigo, então, fiz visita ao antigo Seringal Baixa Verde, atualmente área destinada pelo Incra a parceleiros que a deverão explorar.

O que vi é o que vos narro porque foi realmente bastante marcante. Em contato com os nossos novos colonos  –  os tais parceleiros  –  observei que esses homens da floresta dos dias de hoje têm tudo e querem muito mais. Há carros na garagem, o Governo do Estado e o próprio Governo Federal são os agentes da força maior que devem mecanizar, plantar, colher, dar o peixe para o açude que foi cavado pela própria assistência técnica, cavar cacimba, cuidar do monte de menino catarrento e, aos sábados, o parceleiro, nosso atual herói maior, deve refestelar-se na comodidade do lar e tomar uma cervejinha ao lado da patroa, ou da quenga, isto, é claro, porque ninguém é de ferro.

Ora, irmãos! O arigó não tinha nada. Já o moderno homem da floresta dispõe de terra, capital proveniente de bancos, com juros subsidiados, com carência a perder de vista, trabalho e assistência técnica. Mas, enfim, tem-se que ir ao supermercado comprar tudo, do feijão e arroz à água mineral e ao gás, sim, porque já não são cavadas fontes, como as antigas, altamente saudáveis, nem se constroem mais fogões de barro, branquinhos pela força de um alvejante chamado tabatinga. É, senhores! A produção desses novos pioneiros é bastante irrisória.

Apesar de toda a facilidade, muitos vendem os lotes por qualquer pouco-mais-ou-nada, como diziam os antigos, para a compra de barracos na periferia de Rio Branco ou das cidades maiores, onde as profissões são urbanas e o homem do campo nada sabe fazer. Aí os filhos são diretamente encaminhados ao mundo das drogas, as filhas se prostituem e a esposa passa a ser doméstica, arranja o outro, um desses bacanas que dormem de dia e trabalham à noite, no tráfico! É o caos social. De tudo isso, resta a desagregação da célula mais importante, a família. Aí vem a mendicância, a prostituição, o crime pela via do narcotráfico, o que só aumenta o contingente penitenciário.

Alguns tentam voltar depois que vêem a realidade nua e crua da cidade desumana, porém o patrimônio adquirido com a negociação anterior da gleba não tem valor suficiente para novos empreendimentos rurais. Não dá mais para comprar sequer uma coloniazinha, no dizer dos antigos.
E mais uma vez sou chamado por mim mesmo a opinar sobre o que muitos pensam que nada tenho a ver; mas tenho, e muito. Os órgãos responsáveis pela desconcentração e redistribuição de terras rurais deveriam usar critérios mais coe-rentes na hora de selecionar os parceleiros. Uma cartilha ou mesmo um questionário socioeconômico e cultural bem elaborado adequaria o novo dono de terra e diria das suas habilidades, dos seus costumes, das suas disponibilidades.

Medidas como estas talvez pudessem evitar o que ocorreu aos soldados da borracha, aqueles primeiros seringueiros que por aqui chegaram para a exploração da borracha, na época da revolução e, depois, no tempo da Segunda Guerra. Muitos combatentes morreram sem ver um centavo dessa maldita aposentadoria, enquanto sulistas chegados ao Acre nos anos oitenta e noventa foram declarados beneficiários.
O presidente Salazar, de Portugal, disse uma vez que o homem que tem orgulho de si próprio só sente verdadeira alegria ao vencer as grandes dificuldades. As pequenas dificuldades não pesam na vida dos homens e não podem dar-lhes a cons-ciência e a alegria plena do cumprimento do dever.

Os velhos seringueiros se orgulhavam de tudo o que fizeram para a construção de um Brasil e de um Acre fortes. Sim! Eles deram as suas vidas, por assim dizer… Foram os nossos homens da primeira época, os personagens da minha epopéia rude e real.

* José Cláudio Mota Porfiro é escritor produtivo e não alinhado à ABL.

 

 

Sair da versão mobile