A copa do mundo de futebol é a celebração entre os povos e continentes. Esse é o discurso oficial. É como a democracia racial no Brasil: – uma celebração entre as raças. Tal discurso afirma: democraticamente as raças no Brasil estariam harmonicamente relacionadas! Na copa do mundo aconteceria o mesmo, os povos estariam harmonicamente relacionados, teriam as mesmas oportunidades futebolísticas de ganhar ou perder e nada que não fosse estritamente esportivo influenciaria nos resultados.
O discurso jurídico racista construído no Brasil não foge a esta regra. Todas as oportunidades igualitárias são dadas a qualquer um, não importando condições de classe, gênero e raça. Dessa forma, todas as determinações que não fossem estritamente ligadas à capacidade intelectual e moral dos indivíduos estariam isentas de responsabilização pelas desigualdades e fracassos sociais.
A realidade concreta, no entanto, é diferente do discurso. Assim como na democracia racial brasileira onde a população negra não está socialmente igual ao segmento branco, pois os anos de escravidão e ideologia racista influenciam determinantemente nos espaços socioeconômicos ocupados por brancos e negros; na copa do mundo os resultados aparentemente esportivos não poderiam estar isentos de séculos de ideologia racista e dominação colonial impostas aos povos africanos. Senão vejamos!
Todos os times africanos que estão participando da Copa do Mundo de futebol carregam consigo – segundo quase toda a imprensa – a pecha de violentos e ingênuos. Percebam que essas afirmações em nada fogem à regra de como o continente e a história africana é percebida pela maior parte do senso comum popular e mesmo por intelectuais racistas. A África e os africanos, segundo esse discurso, não teria e não tem condições de controlar e administrar as suas riquezas e os seus territórios, cabendo aos europeus ou empresas multinacionais o comando e controle do espaço africano. A ingenuidade africana necessitaria – por esse discurso – da capacidade intelectual européia para realizar o progresso e a civilização. As violências tribais africanas seriam o exemplo dessa incapacidade de autonomia. Como se percebe, não por acaso os africanos no futebol são vistos como ingênuos e violentos.
Mas não é segredo pra ninguém que a maioria dos jogadores africanos moram desde crianças no continente europeu, foram educados nas línguas e culturas européias e jogam em grandes times do futebol da Europa. São jogadores milionários que tem acesso a todos os artefatos da cultura e educação européia, bem como de todos os recursos técnicos e táticos dos mais avançados no mundo. Mas, se a maioria foi educada no ideário europeu, jogam em grandes times do futebol e tem todos os recursos técnicos e táticos do futebol, por que são vistos e apontados como violentos e ingênuos. A explicação que parece complexa, na verdade é muito simples: a ideologia racista entra em campo.
Comecemos por definir: o que é racismo? De forma objetiva é a vinculação das capacidades intelectuais e morais à sua condição racial ou cultural. É atribuir inferioridade, anomalias e degenerações à condição de indivíduo pertencente a um grupo social e etinicorracial específico. Não é por acaso, portanto, que apesar dos jogadores africanos viverem e trabalharem na Europa serem taxados de violentos e ingênuos.
O que a maioria da imprensa faz é atribuir uma condição intelectual e moral ao fato de serem africanos. Em essência, o problema não está em fazer faltas e perder o jogo, pois qualquer time é sujeito a isto. A questão está no fato de serem africanos e, portanto, incapazes de terem outra condição intelectual que não seja a ingenuidade e outro comportamento moral que não seja a violência.
Repete-se a máxima de Marx: é a história se repetindo como farsa e tragédia. Como farsa na medida em que retoma o discurso falacioso da inferioridade e ingenuidade africana e trágica no sentido de perpetuar o racismo consciente e inconsciente na memória coletiva do brasileiro.
Mas uma vez é necessário retomar o sentido real da história e por no devido lugar a condição africana. Assim como negamos a democracia racial, o racismo e a escravidão, buscando a nossa construção enquanto seres humanos ativos e transformadores; negamos também a ideologia racista futebolisticamente sofisticada que infantiliza e animaliza os africanos, reafirmando a máxima de Solano Trindade, pois nos navios negreiros que se deslocaram para o Brasil e para o mundo não tinham boçais e animais, mas pelo contrário: resistência e inteligência.
*Rosenverck E. Santos
Prof. de História