Durante a minha infância em Tarauacá muito ouvi falar da grande alagação ali acontecida em 1915, a qual, segundo diziam, atingira proporções fenomenais, nunca igualadas e muito menos excedidas. De lá para cá, de todas as outras acontecidas – e não foram poucas – apenas a de 1942 atingiu proporções bem aproximadas.
Pelo que dizia minha mãe, que fora contemporânea do acontecimento, a diferença daquela para esta era de, aproximadamente, 15 centímetros, diferença que, na fazenda em que passamos a morar posteriormente, ali construída pela família a partir de 1926, era constatada numa pequena faixa de terra alta, situada em meio a extensas regiões de vár-zeas, sendo a única na localidade não sujeita às alagações comuns, oferecendo, por isso mesmo, durante essas alagações, abrigo aos animais silvestres que, na época, tinham por habitat toda aquela vasta região e que, mais tarde, depois da instalação da fazenda, passou a servir, em tais situações, às suas criações.
Falava, então, minha mãe que em 1915 essa faixa de terra ficou totalmente submersa, de cujo fato tinha-se como comprovação o grande número de ossadas de animais silvestres encontrado no local depois do acontecimento, o que leva a crer que esses animais, havendo para lá se dirigido em busca de abrigo durante a enchente, com a contínua subida desta até à total submersão da área, lá ficaram inapelavelmente retidos, vindo a falecer por inanição e o permanente contato com a água, alguns, certamente, devorados pelos mais ferozes.
Já na alagação de 1942, a segunda maior depois de 1915, essa faixa de terra não chegou a ficar totalmente coberta. Na ocasião eu tinha apenas treze anos mas participei, com meu pai e alguns empregados, de toda sua luta para salvar os animais, diante de todo aquele aguaceiro, quando, em quase toda propriedade, a parte mais rasa chegava a uma profundidade de dois metros, enquanto, nas alagações consideradas comuns, essa profundidade, mesmo nas partes mais fundas, não passava, geralmente, de um metro.
Dessa ocasião, recordo-me de que, andando, à noite, de canoa com meu pai nos campos alagados e imersos em completa escuridão, ouvindo-se apenas o chiar dos remos cortando a água, sentado na popa da canoa, como responsável pela sua pilotagem, e meu pai e um empregado remando, emparelhados, no banco da proa, muitas vezes eu me sentia apavorado de ser, a qualquer momento, arrebatado da pequena embarcação por uma cobra sucuri de grande dimensão ou mesmo um jacaré gigante, conforme casos dessa natureza já acontecidos, que me haviam sido contados pelos empregados da fazenda, e em que, segundo eles, as vítimas jamais foram encontradas.
Reportando-me ao espetacular fenômeno em meu livro “O Trabalho Vence Tudo”, de 1993, escrito mais de 50 anos depois, e no qual eu registro a saga vivida por meu pai como pioneiro na criação de gado no município de Tarauacá, a partir de l926, assim eu relato alguns momentos e imagens desse acontecimento, que me ficaram indelevelmente na lembrança:
O dia ainda não havia amanhecido e já a retirada dos animais começava a ser providenciada com a ajuda do Antônio Ernesto, morador do outro lado do lago, que, a chamado do proprietário, viera em socorro com a sua canoa.
Levado em caráter emergencial para a “terra firme”, único lugar mais próximo que oferecia abrigo seguro, na esperança de que as águas baixassem, durante, pelo menos, uma semana, o gado aí permaneceu, enquanto, para alimentá-lo, 12 homens, tendo à frente o proprietário, ocupavam-se, todos os dias, de sol a sol, e utilizando um grande batelão a volga, em tirar canarana, folhas de imbaúba e tudo que pudesse servir de ração, cujo consumo de cada carregamento pelo gado faminto, mal dava tempo de espalhá-lo pelo chão.
As águas, no entanto, por muitos dias continuaram subindo e a retirada dos animais quando foi decidida, já o seu nível era bem profundo. Acostumada, no entanto, de outras enchentes, embora menores, na história da fazenda, a veterana “Veada”(animal mais antigo da fazenda) guiou, serena e decididamente o rebanho, demonstrando consciência e confiança sobre aquilo que estava fazendo. O destino, no entanto, desta vez era o recém-construído Campo do Coqueiro (região por trás da cidade, onde, alguns anos depois, se instalou uma companhia do Exército).
Durante quase todo o mês de março, os campos estiveram transformados numa imensidão líquida, na qual se andava, apenas, de canoa. De canoa também se ia, da fazenda, passando pelos campos do Borges e de dona Alzira, até a casa de dona Rita Trajano, na Rua Sansão Gomes, em pleno Centro da cidade, enquanto sobre a “Ponte Cel. Áuton Furtado”, os batelões, impelidos pelos seus possantes motores “burro preto” à popa, navegavam livremente.
Vários dias se passaram até que as águas baixassem e a terra voltasse a ser vista. Uma espessa camada de lama fétida, no entanto, por algum tempo, ainda, continuaria sufocando o pasto, dificultando a que o seu verde ressurgisse e, antes mesmo que se refizesse totalmente, viesse servir, por igual ou maior período, de alimento às vorazes lagartas, cuja praga atraía sobre os campos enormes quantidades de graúnas. Estas, ao levantarem vôo em bandos, escure-ciam, por instantes, boa parte do céu.
Veio, finalmente, o mês de abril e com ele os primeiros sinais de que o período chuvoso estava no fim: um extenso cordão de jaburus, deixando as cabeceiras dos rios, cortava o céu na direção leste em demanda dos grandes cursos d’água ou de seus maiores afluentes. Ao fim, havia chegado, também, o grande pesadelo da segunda maior enchente conhecida de todos os tempos, cujas marcas, tal como a de 1915, talvez jamais venham a ser igualadas e muito menos excedidas.
Alguns dias depois, espessas camadas de nuvens escuras, tangidas por ventos inopinados do sul, cobriam repentinamente o céu e, como imensos rolos de fumo, movimentavam-se velozmente para o Norte. Pancadas rápidas de chuva molhavam, em despedida, a terra, para, em seguida, a temperatura começar a cair. Pela madrugada, os termômetros já marcavam nada menos de doze graus e, por vários dias, o sol permaneceu encoberto. Era o início efetivamente do estio, com a natureza se mostrando exuberantemente bela, sob um céu infinitamente azul, com um sol reluzindo sobre o verde pujante das folhagens e um vento que não cessava, a inquietar, quase que permanentemente, das altaneira árvores, as sua copas, num sussurrar que se misturava ao alegre gorjear de pássaros.