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Fuligem

Enquanto entabulo estas poucas linhas efêmeras, ao mesmo tempo, noto através da janela, a queda  em grande quantidade de fuligem, substância preta, que antigamente se dizia oriunda da fumaça dos fogões à lenha ou a carvão;  esta fuligem era depositada nas paredes e em tetos das cozinhas e nos canos das chaminés. Em defesa do fato, essa definição de fuligem, dada pelos bons dicionários, é, nos dias atuais limitadíssima, uma vez que aqui  no Residencial Santo Afonso, há fuligem em todo lugar. Sem exagero não há um só lugar num aposento de qualquer casa por aqui, salvo um ou outro quarto fechado a sete chaves, em que a fuligem deixe de estar. Elas são incansáveis, terríveis mesmo.

Aliás o  Residencial Santo Afonso, que a maioria dos moradores, chama de loteamento, virou uma verdadeira sucursal do inferno. No período da tarde com as máquinas do governo pavimentando a rua principal, levantando uma poeira danada, sem chuva e com dezenas de lotes (12X25) sendo queimado por seus respectivos donos isto aqui parece mais o deserto do Arizona do século 19. Um inferno! Queixumes à parte, por aqui, está todo mundo eufórico com a possibilidade da chegada do “asfalto”. Incluo-me também nesta euforia, embora, preferindo, antes do asfalto, tubulação de esgoto que traria mais qualidade de vida. Um dia a gente chega lá!

Não é preciso ser grande estudioso das ciências experimentais ou metafísicas para saber a origem dessa fuligem.  Basta ter fumaça nos olhos para saber que nós, seres humanos, homens e mulheres, estamos encurralados pela selvajaria da cultura das queimadas. Esse mal, que é mais moral do que qualquer outra coisa, apesar das investidas enfurecidas da natureza via furacões “katrinas”, “ritas” e “tsunames”, tem trazido grande desgraça a existência humana. As queimadas se resumem na impiedade gananciosa do homem contra o seu próximo.

Entretanto, o teor deste artigo parte do problema que sobeja a todos os outros, diria o evolucionista inglês Huxley, citado nos bons livros de Antropologia Filosófica. Trata-se da determinação do lugar que o homem ocupa na natureza e das suas relações com o universo das coisas; por exemplo: quais são os limites de nosso poder sobre a natureza, pois o que se vê é o homem usando e abusando do reino natural dos minerais, da flora e da fauna. Exploração predatória que só visam os lucros para se gastar com o desnecessário.     

Num passado longínquo, Santo Tomá de Aquino, distinguiu três tipos de lei, que apesar de antiga nunca foi tão oportuna e atual ao homem ao bem comum. O primeiro tipo é constituído pela lei natural “conservação da vida, geração e educação dos filhos e desejo da verdade”; o segundo inclui as leis humanas ou positivas, estabe-lecidas pelo homem com base na lei natural e dirigidas à utilidade comum; finalmente, a lei divina guiaria o homem à consecução de seu fim sobrenatural, enquanto alma imortal.

Faço uso da segunda, já que a primeira, em parte, não encontra mais guarida na cabeça do homem; falar de “conservação da vida” preservando o meio ambiente (conjunto de condições naturais e de influência que atuam sobre os organismos vivos e os seres humanos) é sem dúvida privilégio de uns poucos mortais; pois a ganância e a volúpia do homem moderno não lhes permitem pensar que a prevenção da vida humana e de outras espécies, dependem do respeito e cuidados com o  meio ambiente em que vive.

O filósofo existencialista Martin Heidegger, dizia que o ser humano em sua dimensão de pluralidade é um ser-com-os-outros e para-os-outros, a isto chamamos de convivência social. Este convívio, desgraçadamente, por causa do “natural” egoísmo do homem, provoca, inevitavelmente, confrontos e disputas, onde o mais forte e o mais esperto se beneficiam, provocando situações injustas. Um caso característico dessa injustiça é a situação em que se encontra o Estado do Acre que, em função da sua situação geográfica, fica refém, em época de estiagem, das queimadas irresponsáveis e criminosas, com nascente em Estados adjacentes. O que fazer?

Diz Sto. Tomás: “as leis humanas ou positivas são estabelecidas pelo homem com base na lei natural e dirigidas à utilidade comum”. Isto é, toda lei tem como finalidade o bem comum e nunca o bem de um determinado indivíduo ou grupos em prejuízo do bem geral. Especialistas dizem que quando a lei se desvia do bem comum pode ser impugnada como carente de razoabilidade e fulminada pela nulidade.

Então, compete ao Estado, concebido como instituição natural, munido de um poder que brota da própria sociedade, promover e  assegurar o bem comum. Não é mais concebível que o Acre continue a conviver, daqui para frente, com situações gravíssimas, pelas quais temos passado em todos os verãos amazônico. Os  males, advindos dessa fumaceira infernal,  que afetam a todos nós, não foram procedentes da natureza, é crime vindo da perversidade do homem insensível, violento e ganancioso.   

Sabemos que providências, por parte das autoridades constituídas, estão sendo tomadas; mas compete, também, a nós sociedade guardar na memória os fatos calamitosos dos últimos anos, pois não podemos ser um povo sem memória, como é próprio da massa alienada; enquanto pensamos no sofrimento que o povo, notadamente o mais humilde, sofreu e sofre como conseqüência dessas queimadas criminosas, supliquemos aos céus para que apareçam ações políticas eficazes que levem a cabo o cumprimento de leis já existentes. 

* Francisco Assis dos Santos é professor e pesquisador  bibliográfico em Filosofia e Ciências da Religião. E-mail: assisprof@yahoo.com.br

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