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Vida nova e solidão

O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE     CAPÍTULO XXVI

José Cláudio Mota Porfiro*

Ato a tipóia e passo a ler as anotações feitas desde Boca do Acre em papel de embrulho e garatujas e garranchos em lápis de carpinteiro, daqueles de risco mais grosso. A alma quer chorar. Tenho acreditado que só nos recordamos verdadeiramente daquilo que nos era destinado porque a memória não lê cartas alheias, como no caso da bem amada por quem a minha poesia flui. Penso na leitura do romance Madame Bovary, de Flaubert. Em certo ponto, está escrito que a recordação é a esperança pelo avesso. Olha-se para o fundo do poço como se olhou para o alto da torre. Sinto a necessidade de ocupar o espírito com novas sensações, novos pensamentos, porque a saudade é coisa de quem tem a cabeça desocupada.

Vêm-me à memória, agora, os nomes sempre bem postos e, às vezes, até engraçados, das cidades nordestinas. Como nos seringais do Acre, também lá os nomes chegam a parecer poesia. Um dos funcionários da livraria, em Fortaleza, anotou nomes meio poéticos de apenas três estados nordestinos. No Rio Grande do Norte, há Canguaretama, Jurucutu, Cabrobó, Peritoró e Passa e Fica. Na Paraíba, muito sugestivos e simpáticos são os nomes de Ingá do Bacamarte, Conceição do Piancó, Cacimba de Dentro, Camalaú, Carrapateira, Catolé do Rocha, Coxixola, Gurinhem, Jurupiranga, Pitimbu, Puxinana e Zabelê. Melhor ainda é no Ceará onde sobressaem os nomes de Banabuiú, Cariacu, Guaiúba, Ibicuitinga, Iraucuba, Jijóca, Quixela, Riacho de Sangue, Tejucuoca e Uruoca.

Se o espírito não de engana e a verdade não me mente, há uma parte dos nomes de vilas e seringais que não estão aqui anotados. Apesar de sempre bem informado sobre tudo, o meu cicerone caboclo nada arredio, como os outros, às vezes dorme e eu não tenho a desfaçatez de acordá-lo para perguntar o que quer que seja. Ora, se há uma hora que eu respeito, é a do sono ou a do comer. Por que atrapalhar?

Da Vila Floriano Peixoto, Amazonas, chega-se ao Seringal Boca do Antimari, de propriedade de Rodrigo Afonso e, em seguida, ao São Francisco, de Custódio Rabelo. Aí seguem-se o Entre Rios, o Campinas e o Porto Central, este, de propriedade do Coronel Sebastião Dantas, vizinho ao Santa Filomena, do Banco do Brasil. Em seguida, vem o Lua Nova, o Redenção e o Novo Andirá, este, também do acima citado Coronel. Os próximos, depois da Boca do Riozinho do Andirá, são Maranguape, Veneza, Novo Axioma (de um português, o Comendador Joaquim Maria Leite, já falecido), o Pirapora, o Nova Granada, o Imperatriz, o Macapá o Boa Vista, o Esperança e o Caquetá, na extrema do Amazonas com o Território do Acre. Neste, foi montado o quartel-general de Plácido de Castro e foi também a partir de onde José Carvalho partiu chefiando a primeira insurreição contra o domínio boliviano.

Segue-se, então, uma povoação hoje denominada Porto Acre, antiga Puerto Alonso, fundada pelos bolivianos em 1899 e, depois, chamada Cidade do Acre, sede do Governo Provisório de Luiz Galvez, um herói estilo romântico que empreendeu aventura épica também com a finalidade de fazer do Acre um Estado Independente.

De Porto Acre, chega-se ao Seringal Floresta e, daí, ao Bom Destino, antiga propriedade do Coronel Joaquim Victor da Silva, um dos heróis da Revolução Acreana.

Chega-se, então, ao Seringal Glória e, daí, ao Humaitá, onde os bolivianos instalaram a sua Delegacia Nacional da Bolívia, chefiada por Ladislau Ibarra, e compuseram um batalhão que levou a cabo a vida muitos patriotas brasileiros.

Os próximos seringais são Curupaiti, União, Boa União, Preferência, Novo Horizonte, Transual, Bagaço, São Carlos, Oriente, Baixa Verde, Nova Olinda, Vinte e Três de Julho, Vista Alegre, Catuaba, Novo Oriente, Liberdade, Belo Jardim, Panorama, Igarapé da Judia, Empreza e, enfim, a cidade de Rio Branco, esta, edificada nas duas margens do Rio Acre e formada, basicamente, pelos bairros Penápolis, Rio Branco e Quinze. Tem praças, ruas e avenidas, casas construídas na maioria de madeira e cobertas de zinco, de aspecto bastante agradável. É iluminada à luz elétrica, possui telefone, estação rádio-telegráfica, capitania dos portos, mesa de renda, correios, cadeia, quartel do regimento policial, Banco do Brasil e casas de comércio bastante sortidas. Há fórum e outras repartições públicas. Na praça central, ao lado do Mercado, existe um bonito jardim onde a banda musical da polícia entretém os habitantes.   

Em seguida, há o Seringal Bagé, o Amapá, Nova Empreza, Boca do Riozinho, Flor do Ouro e Benfica, este, de propriedade do Coronel Rôla e onde o caudilho acreano foi tocaiado e morto. Vem depois o Paraíso e o Capatará, este último, antiga propriedade de Plácido de Castro que dispõe, inclusive, de campos naturais para a criação de gado.

O grande Seringal Itu, de propriedade do Coronel Honório Alves das Neves, ao lado do Iracema  –  depois elevado a vila  –  de propriedade do Coronel Raimundo Sargento são, muito provavelmente, os maiores empreendimentos agropecuários da região amazônica sul-ocidental. O Itu ainda produz, anualmente, cerca de cem mil quilos de borracha.

Numa área central do Seringal Itu, ergue-se a Fazenda Palmares, também do Coronel Honório Alves, pernambucano radicado no Acre há trinta e cinco anos, com assento na Asso-ciação Comercial do Rio de Janeiro e na Sociedade de Agricultura, e com livre trânsito junto aos altos poderes da Nação.
Além do aproveitamento dos campos naturais que já tinham o capim papuan, o pioneiro Honório, famoso por sua amabilidade e tino para os bons negócios, importou do Rio de Janeiro e plantou nos dois mil hectares da fazenda o jaraguá, capim com o qual mantém, em média, ou permanentemente, sempre mais de duas mil reses. Industrializa queijo e manteiga, de primeira qualidade, sempre preferidos pelos do sul do Brasil. A residência é vasta e confortável e está localizada na parte mais elevada do campo, exatamente no centro e bem próxima à divisão das águas que correm para o Rio Ituxi e o Igarapé São João do Itu.

Do Itu, chega-se ao Remanso, São Luiz do Remanso, São Gabriel, Nova Amélia, Perseverança, Vila Nova, São Francisco do Iracema e Iracema, este último, o maior contribuinte do Acre, pois em 1925 pagou mais de quinhentos contos de imposto de exportação. Aí, há mora-dias de fino acabamento, com luz elétrica e água encanada. Há engenho de cana-de-açúcar e álcool, prensa para extrair óleos vegetais, padaria, curral modelo e criação de gado zebu.
Daí, então, chega-se ao Seringal Boa Fé, ao Europa e, finalmente, à Boca do Lago, esta, sim, a capela e o patíbulo da minha penitência e do pagamento das dívidas d’alma em terras amazônicas. Não que eu tenha sofrido muito, não. Minha pena é até branda. Muito mais porque jamais pensei, nem nos piores dias da minha vida de moleque sertanejo arteiro e traquino, presenciar e viver junto com os agentes de tanta riqueza e de tanto sofrimento, os seringueiros.
Seringal Boca do Lago. Aqui estabelecerei a minha nova morada, base para o meu grande vôo por sobre a grandeza da floresta amazônica. Que ninguém duvide!

São duas da tarde. Lá está, acocorada à sombra de um jenipapeiro, uma senhora de uns sessenta anos de pouca ou nenhuma conversa. O patrão, conforme me disse o cicerone caboclo, deve ter feito viagem de inspeção ao centro, às colocações de seringa. A patroa está pegando a sesta nos seus aposentos, num andar superior da grande casa de madeira e zinco maciço. Não faz calor, nem faz frio.

Passei umas três horas esperando uma resposta ao cumprimento dirigido à única criatura até aquela hora, uma quarta-feira, vista por mim depois que o meu desolado Republicano apitou e desapareceu na curva do rio, agora, rumo ao Seringal Palmarizinho, de propriedade de João Veloso de Albuquerque.
Ela nunca responderia. Júlia, a boa cozinheira pernambucana, era moca e muda. Tinha a língua pregada e os ouvidos tampados por uma cera ali colocada por Deus, mas cozinhava com mãos de santa. Em um mês, engordei três quilos.

Beirando as cinco da tarde, pego o parabelum novinho comprado em Belém e caminho, interminavelmente, por um enorme arrozal já quase em dias de ser colhido. Pássaros pretos chamados pipiras e graúnas fazem a festa, posto que o arroz ainda não foi apanhado. Não dou tiros neles, mas na solidão e no silêncio que já me atordoam.

É uma nova posição a que eu agora adoto na vida. Preciso fazer como fazia aquele oficial inglês destacado na Índia que, após o jantar, ia para a floresta, de revólver em punho, enfrentar as feras a tiros, para endurecer a alma e reforçar o caráter. É, sim. Eu preciso disso. Menino mofino, rapaz frouxo, homem sem disposição para a luta. Não! Não é possível. É preciso enfrentar corajosamente a terra bravia do seringal, a aterradora terra de pântanos escuros, que as águas crispadas das enchentes lambem e afogam todos os anos, que as árvores poderosas esmagam no verão com os seus troncos monstruo-sos, terra de lamas pútridas e rios pegajosos, cheia de perigos e traições, sem ternura, sem alegria e sem piedade. É preciso conhecê-la, estuprá-la, dominá-la violentamente, para, só depois, poder possuí-la com amor.

O barracão é o que eu esperava: um vasto casarão de madeira, coberto de zinco espesso vindo de Portugal, repousando sobre grossas estacas e ligado ao rio por um trapiche de uns vinte metros. Ali, um salão amplo e de tábuas bem cuidadas com uma mesa de jantar, cadeiras, tamboretes e bancos de pau, fogão de lenha a um canto. Em seguida, três quartos grandes de janelas mínimas, com redes dobradas sobre camas que mais parecem catres, dada a sua rudeza ou a rudeza de quem as fabricou.

Há ainda, é claro, o armazém, de porte médio,  meio quadrado, de uns dez por doze metros, com o balcão e as prateleiras, onde estão empilhados os gêneros: carne seca ou jabá, pirarucu, farinha d’água, sal, açúcar, querosene, fósforos, anzóis, terçados, machadinhas, tigelas, linha para pescar e para costurar, agulhas, remédios, louças, fazendas, miudezas. Na parede, o nome dos cinqüenta fregueses que trabalham no corte da seringa.

Localizadas na foz do Lago do Arapixi, as terras onde hoje se localizam a Boca do Lago, pomposo nome com o qual é conhecida até na capital do Pará, é claro, antes, pertenceram aos índios meneteris, parentes próximos dos catianas e dos xapuris. O patrão, dono da firma aviadora César Costa & Cia, homem ruim como cobra, expulsou-os debaixo do fogo de rifles, queimou-lhes as malocas e ainda por cima levou duas indiazinhas para Belém nas quais fez quatro robustos e bem criados caboclinhos que misturam  –  dizem  –  as verdadeiras mães. (Nenhum sabe quem é filho de quem, exatamente.)
Nem bem passada mais de uma semana da minha chegada, amanhã irei visitar a Colocação Vida Nova, de Seu Zé Raimundo, um cearense de Sobral, marido de D. Isabé, sem nenhum filho, seringueiro há uns trinta anos. A colocação é razoável: um barraco, um defumador, um pequeno paiol para guardar milho e macaxeira para a criação e três estradas com cinquenta seringueiras cada uma. Em razão da presença feminina, a casinha de palha é até agradável, apesar dos oito degraus a superar. Paredes de ripas de paxiúba e chão de paxiúba batida bem limpinho, à beira do rio. Tem uma salinha acanhada, um quarto com duas redes e um antigo baú, e uma cozinha com fogão de barro e jirau.

Duríssima realidade. Seu Zé Raimundo pula da rede mal as barras da madrugada riscam o céu. Engole uma chicrinha de café e cai na estrada a sangrar seringueiras e a colocar tigelinhas de flandres. Sigo-o para conhecer o serviço de perto. Mais ou menos às onze e meia da manhã, estamos de volta para o almoço bem feito, inclusive com ingredientes incomuns, por D. Isabé que toma para si a labuta dita doméstica: pilar arroz, colher um pouco do feijão mulatinho que lhe é permitido plantar, dar milho para as galinhas, patos e porcos, capinar a roça de macaxeira, além de cuidar de uma pequena horta de onde tira, inclusive, chicórias, cebolinhas de palha, tomates e couve, para o meu espanto.

Que sorte a do Seu Zé! Dona Isabé é uma mulher prendada vinda do sertão atrás de uma promessa de vida fácil que lhe fizera o jovem e aventureiro marido. Segundo ela, aqui têm muito mais que lá, principalmente, a carne dos bichos de casa e dos do mato, além do peixe farto pescado por ela do parapeito da casinhola, no inverno, ou de cima de um velho tronco de castanheira enganchado por anos a fio no beirada do Rio Acre.
Num dia de pescaria, manhãzinha de domingo, Isabel estava lá embaixo acocorada sob o velho tronco e o Zé cortava a barba à faca no parapeito, quando ouviu o grito e o rebojo.

– Valei-me Deus, Nossa Senhora e São Sebastião! – Foi o que disse o Zé apavorado que, sem pestanejar, pegou a velha canoa e pulou dentro remando quase cegamente. O casco, em certo ponto, bateu num grosso tronco de árvore e quase vira e alaga. O brabo mergulhou, ágil, a mão no rio para ver que tronco era aquele… E o tronco se mexeu embaixo da canoa, lento, pesado, indiferente. Ele não teve dúvida. Golpeou três vezes o lombo da bicha com o machado que portava. Houve um barulho medonho e o animal se foi, enquanto Isabel tremia feito vara verde agarrada a um outro tronco, este, agora, de árvore verdadeira. A cobra errara o bote devido estar prenhe. Disso o Zé teve certeza porque no outro dia, lá numa ponta de praia, estava estirada uma sucuriju de dezoito metros e mais três filhotes ainda sem condições de sobrevida sozinhos.
– Acredito, sim, homem de Deus! Tá acreditado, Seu Zé!

O tamanho da bicha era realmente descomunal e eu tenho certeza pelo fato de o couro ainda estar dependurado na parede do lado de fora da barraca, isto, segundo o Zé, para espantar onça pintada que sente o cheiro à distância e tem medo de se aproximar pelo fato de ser comum às sucurijus abocanharem qualquer tipo de animal, inclusive bois e vacas.

* José Cláudio Mota Porfiro é escritor produtivo, não alinhado e sem patrocínio; pesquisador dos quadros da Ufac. Este é mais um capítulo do romance O inverno dos anjos do sol poente.

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