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Hermenêutica da Lei da “Ficha Limpa” ou “Da Arte de Enrolar o Povão”

Muito se tem discutido a respeito da aplicabilidade, ainda para essas eleições, da lei da “Ficha Limpa”.

Li hoje na mídia que se o Ministro Peluzo, Presidente do STF, for decidir pelo voto de minerva, sua tendência, como julgador, seria a de aplicar, ao caso, o “princípio” da anualidade.

A mídia errou. Foi tomada pela importância da notícia e equivocou-se quanto à importância da justiça.

Sem trocadilho infame, anualidade não é princípio, se for, é princípio de nada.

Como divisão de tempo (produto cultural) anualidade nem regra é.

Pode, no máximo, ser praxe ou convenção contratual desde que os contratantes assim o queiram.

Princípio, em termos jurídicos, se sobrepõe à lei porque existe, vige e ocorre independentemente de qualquer vontade, regra ou convenção, ou seja, princípio está acima e independe de tempo ou espaço.

A partir dessas premissas (verdadeiras) temos, nos dias de hoje, a sociedade exigindo a prestação jurisdicional para o seguinte fato:
A lei que exige “ficha limpa” dos candidatos que renunciaram aos cargos eletivos vale para essa eleição, se nossa Constituição tem como cláusula pétrea, a previsão legal no momento do ato em julgamento?

Como exemplo prático, citamos nosso código penal que antes da atual Constituição, em obediência a constituições anteriores, estabelece o princípio do nulla poena, nullum crimen sine lege previa.

Note-se que o princípio não é temporal. Trata-se questão acerca da responsabilidade, culpabilidade, imputabilidade, etc. etc..

Hoje, por determinação expressa da Constituição, ninguém é obrigado a fazer, ou deixar de fazer, senão em virtude de lei.

O mérito da questão levada ao Supremo para definir a “tendência” do Judiciário na aplicação da “lei da ficha limpa” é o seguinte:

Se o candidato renunciou, anteriormente, ao mandato para fugir de alguma pena, pode ser penalizado, no futuro, por essa renúncia pretérita?
Minha resposta, como advogado de roça, é sim.

A lei, assim como as constituições são elaboradas para vigir e servir à sociedade (a aldeia de Tolstoy – equivocadamente, atribuída a Marcuse), hoje, a tão em moda “comunidade” que abrange em termos culturais, da favela do Canta Galo à “comunidade globalizada”.

Tão globalizada que em Rio Branco que não tem morro (só barranco), para justificar o “esquadrão da morte”, eufemismo para uma atuante quadrilha de assassinos, comandada por um delegado local, inventaram o “Morro do Marrosa”, onde residia, e a ele deu seu nome, um pobre coitado, viciado e doente, estúpida e covardemente, assassinado pelas “forças de segurança” locais.

Para imitar as chacinas, já então comuns no Rio de Janeiro, o fuzilaram ao mesmo tempo em que o povão comemorava, com barulhento foguetório, algum jogo de futebol.

Pois é, como diz o Silvio Martinelo, o Acre é pobre, mas é enjoado.

Quando se fala que o SUPREMO vai decidir a questão, o TRE do Acre, já decidiu acertadamente, há muito tempo, a aplicabilidade atual da “lei da ficha limpa”.

Porque, qualquer um sabe que a lei é feita para a sociedade e não para o indivíduo.

Os direitos individuais são um reconhecimento da sociedade que “todos, “os indivíduos”, são iguais perante a lei, etc. etc.)

Assim se a renúncia de algum mandato se operou “dolosamente” para fugir a uma pena que a sociedade impõe ao mandatário político, ela está aplicando a si mesmo um castigo, permitindo ser governada, politicamente, por um marginal. É como o malandro tirar férias da cadeia e depois contar o “tempo das férias” para cumprimento da pena.

Entendeu?

Minha senhora, perdôe-me.  Sou prolixo. Vou tentar explicar novamente:

A anterioridade da Lei é um princípio aplicável a um todo (a sociedade) não ao indivíduo (no caso, o malandro) em detrimento da própria sociedade, ou do poder do Estado. Nunca é demais lembrar que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”.

A questão, o sujeito renunciou para escapar da lei (tirou férias da cadeia, para o malandro que fugiu) pode depois da renúncia voltar à boquinha, ou as imensas tetas governamentais, é uma questão Constitucional?

Nem na China.

Bobbio, elegante como bom italiano, desprezando a hierarquia das leis, diria que estamos diante de uma “falsa” dicotomia.

Kant (Crítica da Razão Pura), com sua franqueza germânica, diria que o problema é inexistente. E tem razão, não existe. Só existe na cabeça do malandro para fugir da cana e na idéia dos mal informados para “fazer” justiça, atendendo, na maioria das vezes, equivocadamente, os interesses políticos de plantão.

Reconhecemos que, à primeira vista, o problema é complexo.

Tão complexo que Dworkin analisou o problema (DWORKIN, Ronald, Taking rights seriously, p. 29) e foi citado com eficácia e proficiência pelo Juiz Federal da Seção Judiciária do Ceará, Geor-ge Marmelstein Lima (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2624)
No seu artigo “As funções dos princípios constitucionais”.

Houve nos Estados Unidos da América um caso, no qual, o neto matou o avô que ainda em vida, havia deixado, a ele – neto -, seu patrimônio por testamento. Como o avô estava apaixonado por uma mulher, o neto percebendo que se o avô casasse revogaria o testamento do qual era único legatário, o matou.

No aspecto criminal nenhuma dúvida. O réu (neto), provada a materialidade e a autoria do crime, iria para a cadeia.

A pergunta que o Tribunal respondeu, ao povo americano, quando julgou o caso foi: O neto (assassino), sim, iria para a cadeia, mas rico ou pobre?

A questão é pertinente e atual porque a lei (regra) diz, expressamente, desde os primeiros tempos da civilização que só quem pode revogar um testamento é o testador. Ninguém mais.    E, no caso, o testador morreu sem ter revogado seu próprio testamento.

O Tribunal de Nova Iorque, no caso Regis versus Palmer, decidiu que o neto iria para a cadeia pobre, porque “ninguém pode beneficiar-se de sua própria torpeza”.

Concluindo: quando, aplicando a regra, o Juiz nega vigência ao princípio, julga equivocadamente. Para fazer justiça deve aplicar sempre o princípio, em detrimento da regra.

Como “tempo” não é principio de nada, e não existe princípio da temporalidade (nem fim) danem-se os espertinhos que renunciaram para não ir em cana.
Até porque, os homens e Deus concordam sem divergência: o universo e o tempo são infinitos.

O povo não pode sempre (ou infinitamente) ser feito de otário.

Há um limite, inclusive, para a sua paciência, senão, nunca teria havido revoluções.

* João Tezza (OAB- AC-105) é bacharel de província, eufemismo litúrgico para advogado de roça e mecenas, junto com alguns amigos, do “Chorinho Tropical – Música de qualidade” que funciona todas as sextas feiras, em Rio Branco-AC, a partir das 20 horas.

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