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Colocação Desengano

O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE   CAPÍTULO XXVII

É o começo do fabrico do ano de 1938. As estradas de seringa ainda estão sendo limpas e as seringueiras, raspadas. Fui aconselhado a ficar por dois dias em companhia de Seu Zé Raimundo e Dona Isabé, na Colocação Desengano, de sexta para sábado e para domingo. Vou a pé e percorro a hora e meia de viagem com uma espingarda doze numa mão e na outra um bisaco com uma muda de roupa e o parabelum de seis tiros carregado até a tampa. Disseram-me que deveria ter medo de onça.  Já tenho. Ouvirei da parte de um seringueiro as impressões deste a respeito da vida no seringal.

Depois do corte da seringa, feito desde manhãzinha, quando a árvore ainda mantém o frescor da madrugada, completamos a primeira volta do dia. Seu Zé e eu, então, almoçamos na boca da estrada que fica a apenas uns cinqüenta metros da barraca. Comemos carne de porco do mato cozida com quiabo e gerimun, e mais feijão, arroz, farinha e uma talhada de melancia… E nos colocamos de novo a percorrer o mesmo caminho da manhã, agora, colhendo as tigelinhas já cheias de látex e colocando o leite num vasilhame de alumínio de boca apertada fabricado a partir do reaproveitamento de latas de banha de dois quilos. O homem é ligeiro demais e, por isto, também não deixa a conversa perder o ritmo.

Trouxemos de volta cinco baldes cheinhos colocados em sacos encauchados (impermeáveis pelo banho de látex). D. Isabé já está com o defumador aceso, mas o sertanejo não se aperta e apanha um machado. Eu o acompanho, apesar do cansaço. Logo em frente, há um cumaru de cheiro já derrubado e ele passa a, habilidosamente, retirar lascas da árvore, aqui chamadas cavacos, com os quais é produzida a fumaça que coagula o látex. E a prosa não para. Ele fala continuamente das dificuldades da vida na mata e da relativa felicidade que vive ao lado da esposa.

– Mas as coisa vai miorar, seu Melqui! São Sebastião há de querer. Tive um sinal, agora por último, no 20 de Janeiro, quando fui a Xapuri para a procissão do Santo. O preço da borracha vai subir e quem trabalhar mais vai ganhar muito mais… Eu, cuma não tenho famía grande, talvez possa dar uma volta no Ceará para rever a minha raça.

O jamaxi, agora carregado por mim, está cheio de cavacos que passam a ser logo colocados na fornalha para sustentar a fumaça. O homem, então, pega o pau da borracha com a habilidade de quem pega uma caneta, com algum exagero, é claro. Às cinco e meia, o serviço está completo e vamos tomar banho num igarapezinho bem próximo à barraca. Em seguida, jantamos alguma coisa bem parecida com o que havíamos almoçado.

Depois, então, eu puxo do bisaco um folheto de cordel e passo a ler de forma declamada A história da Princesa da Pedra Fina, de autoria de Antônio Izidoro dos Santos. Em seguida, atamos duas tipóias na sala, uma do lado da outra, e o já meu grande amigo passa a fazer relatos do tempo em que morava no Seringal São Jerônimo, no Pará, próximo à divisa com o Amazonas, logo depois de haver casado, ainda no Ceará.

– Aquilo ali era muito ruim, Seu Melqui! Não havia paz, principalmente. Eu e Isabé estávamos sempre com medo. – Dito o que colocou o bule do café mais perto e passou a mão na cabeça da véia que não deveria ter mais que trinta anos, num gesto bastante compreensível.

– No seringal, na maioria dos casos, o trabalho é desumano. O patrão não tem pena da gente. É preciso reformar essa tiborna, tudo isso… Está tudo errado. Não há lei, não há justiça. A gente tem a posse da terra, mas não tem a propriedade. Enquanto produz, tudo bem. Mas se adoece, vá pro diabo que o carregue! E quem faz o preço é a firma. Aqui, pelo menos, o patrão é bom de negócio. Ele não engana ninguém nem os seringueiros querem enganar a ele.

Segundo ouço, no São Jerônimo, a população era uma espécie de Legião Estrangeira da Floresta. Um exército de criminosos, de anormais, de fracassados. Aqueles verdes ermos  –  onde o pútrido hálito das águas e o desesperante zumbido dos insetos no mormaço crepuscular tornavam a vida ainda mais áspera e pesada  –  eram refúgio de crimes, de desgostos, de tristezas, de arrependimentos, de misérias de toda ordem. E a solidão e a escravidão criavam afinal para todos a fraternidade melancólica de um destino comum. A história e o sofrimento, o desespero e a alucinação moravam em todos aqueles tapiris miseráveis e tristes, às vezes a quilômetros de distância uns dos outros, ora na beira do rio, ora no centro do seringal.

Só uma casa limpa, alegre, bem tratada se erguia naquele mundão de água e floresta. Era a de Zé Raimundo e Isabé, retirantes cearenses, pessoas de bem, trabalhadores honestos que a seca jogara naqueles cafundós. A casa tinha na frente um jirau com coentro, canela e cravinas e, lá dentro, tudo asseado e arrumado. Era a única família direita, e bem organizada, na solidão daquele seringal.

Os outros seringueiros, esses, que tristeza! Uma escória moral desagregando-se, apodrecendo, na solidão, no desconforto e na miséria dos tapiris. Alguns, porém, deveriam estar no hospício. Eram apenas doidos, coitados!

Joaquim Francisco, um pernambucano, no Seringal Quixeramobim, também no baixo Amazonas, ficou uma vez com a voz presa, sentiu a perseguição de todos, começou a ouvir vozes no ar, conversava com pessoas invisíveis  –  falava sozinho  –  via por toda parte bichos e pássaros malignos. E, como estava ruim do juízo, foi contratado por cem mil réis para matar um cristão, mas matou logo também a esposa, para que esta não contasse o caso a ninguém. No Seringal São Jerônimo, recuperara a tranqüilidade porque não havia ninguém que mexesse com ele.

Outra besta fera se chamava Manduca Pé-de-Onça. Segundo Seu Zé Raimundo, ele contava friamente ter assassinado a madrasta a cacetadas com a ajuda de três irmãs. As palavras que dele ficaram foram as seguintes:

– Foi tudo a força do metal!

Um dos seringueiros matou o companheiro de tapiri no seringal. Era o Luiz Júlio. Ele se arruinara depois que tomara a puçanga  –  poção  –  que um pajé lhe deu a beber. Perdeu as forças de homem, ficou meio aluado. E, como o companheiro com quem morava no tapiri desconfiasse e lhe fizesse propostas indecentes, respondeu em cima da bucha:

– Larga de sê besta, rapaz! Não vê que eu sou homi?

 O outro mangou dele:

– Qual homi, qual nada! Você é um fresco!

Perdeu então a paciência e sapecou fogo nele. Atirou até dizer basta. Por cima, meteu-lhe a lambedeira no vazio. E depois atirou o defunto na correnteza do rio, com os miolos e as tripas de fora.

– Fiz tudo por ordem do Alto! O senhor compreende, né? Escutei uma voz que me disse que ele ia estragar a minha vida. Antes que ele me jantasse, eu almocei ele…

Jorge do Poço vivia com uma irmã e, como esta tivesse ficado grávida, atirou-a tranquilamente na cachoeira do rio.
– Mal se corta é pela raiz, explicava.

De Brás da Inácia sabia-se ser um criminoso frio e cruel.

– Conversei com ele. Contou-me o seu caso sem a menor hesitação. – Afiançou Zé Raimundo.

– Mulher é coisa sem valência. – Disse o Brás. – Sabia que Quitéria não era donzela, mas não me importei com isso. Casei com ela. Pensava que tudo ia melhorar, que ela criasse juízo. Um dia, peguei a desavergonhada no mato com um homem. Não atrapalhei. Fiz que não via. Fui pra casa e esperei. Quando ela chegou, toda lampeira, pedi uma chicrinha de café.  Queria só ver a cara da safada.

– Já levo, Brás! – Foi o que ela disse.

 – E quando ela veio se chegando com a xícara na mão, sangrei-a como se sangra uma vaca. Mulher deslavada se exempla é de uma vez por todas!
– Mas pra mim  –  palavra  –  o pior  monstro do seringal era o Rafael Pena Dura. – Afirmou o sertanejo. – Deflorou três filhas moças, diante da própria mulher, e viviam as quatro, tranquilamente, na mesma barraca, com a maior naturalidade. E tem filhos das quatro mulheres, o sem vergonha! Seus filhos seus netos são  –  e brincam juntos na inconsciência do mesmo destino fatídico.

O gerente da Boca do Lago carrega às costas um nome de espantar jacuraru: João Terêncio de Carvalho, de família bastante numerosa e abastada do sertão da Paraíba. Simpático, até certo ponto, em que pese o seu mutismo e alheamento, faz conta de cabeça como poucos. Chego até a pensar porque um homem desse precisa de guarda-livro. Mas as contas realmente são muitas. Há investimentos no Banco do Pará e no Banco do Brasil. A firma confia-lhe mexer com o negócio de uma fábrica de laminação de borracha, uma outra de beneficiamento de guaraná e uma de extração de óleos vegetais, tudo em Belém. Poucos sabem. Além de Dona Prisca, a esposa, muito provavelmente só eu, agora, passo a ter conhecimento da competência dele.

Muito atencioso, explicou-me, pausadamente, detalhes da minha atuação:

– Sou arrendatário da firma Gatasse Kalume & Filhos, de Belém. Há família de bem trabalhando neste seringal, assim como no Palmarizinho, e no Albrácia, os nossos vizinhos rio acima. Aqui, dos cinqüenta seringueiros, apenas seis são solteiros, mas três deles já estão noivos com moças daqui mesmo. Digo isso porque o senhor é um homem sozinho e, se quiser, pode até arranjar uma boa mulher por aqui, isto, porque homem bem casado tem mais possibilidades de se levantar na vida. No que se relaciona ao seu trabalho, as contas são muitas, além das que dizem respeito aos fregueses. Muitos têm saldo até vantajoso, mas não querem sair de debaixo das minhas asas. Poucos são os que têm dívida, mas a produção é suficiente para, em dezembro, fecharmos os números sem prejuízo de nenhum deles, mas com o lucro que o nosso zelo conseguir. Os negócios em Belém do Pará é que vão requerer muita atenção. Por isto, fiz questão de que viesse para cá, principalmente, devido a sua formação e o seu pendor para com a moeda e os bancos. Para isso o senhor se formou. Aqui, então, nós teremos um controle geral que será batido com o controle do meu pessoal de lá, a cada dois meses. É certo que não vou conseguir lhe manter muito tempo por aqui, não por causa do vencimento alto, mas devido o fato de o Acre estar precisando de gente com tino e inteligência para gerenciar os negócios públicos, e este é exatamente o seu caso.

Fiquei bastante satisfeito com as perspectivas que me foram apontadas mas, por dever de consciência, ficaria ali por, no mínimo, um ou um ano e meio, para organizar tudo e, depois, provavelmente, continuar administrando os negócios da firma e do Seu Teté, o apelido do homem, a partir de Rio Branco, talvez, onde há uma agência do Banco do Brasil. É trabalhar e esperar para ver os resultados dos esforços.

A Senhora Prisca atende pelo nome de Nenzinha. Usa muito bem um rifle e um revólver trinta e oito, de sua propriedade, bebe sempre uma cachacinha misturada com leite condensado, no que não é acompanhada pelo marido, um abstêmio.

Segundo Seu Zé Raimundo, o esporte de que ela mais gosta, depois de ficar proncha, é se embalar numa rede e acertar tiros com o rifle ou com o revólver no fundo das latas de leite vazias ou cheias. Por isto é que observo furos de bala na prateleira do armário da sala de janta.

Mas Dona Nenzinha também é uma pessoa muito boa, apesar daquela gargalhada de vidros partidos, isto, a partir das dez da manhã porque, antes, o lundu não a deixa se acordar direito. Ajuda a bater pilão, sem ser chamada, apenas com o intuito de se exercitar, parece-me. Cantarola cantigas que me levam direto aos tempos da vida boêmia em Belém. Há uma espécie de ajudante de ordem e uma secretária para qualquer tarefa que estão sempre à sua volta. São a esposa e a filha de Raimundo Nonato Perneta, o chefe da turma de comboieiros formada, ainda, por João do Mato, Zé Pitéte, Arigó, Saraiva, Mundim, Catolé e Astrogildo, todos com as suas esposas e filhos nas casas enfileiradas na parte mais de baixo do rio, próximo à boca do grande lago, por trás de uns pés de papoula e mangueirinhas. 
*        *        *
4 de fevereiro de 1938.

Caríssima Latifa Al Kalid. Meu amor!

Escrevo-te estas mal traçadas linhas esperando que as mesmas ao chegarem às tuas belas mãos encontrem você e todos da família gozando da mais perfeita harmonia e saúde, na graça de Deus, nosso grande Pai que nunca haverá de nos desamparar.

Já tem mais de mês e pouco que não te dou notícias porque, na viagem, tudo é muito mais difícil, principalmente, achar uma agência dos Correios nesse mundão de Deus. Só agora escrevo para te fazer crer que esta fase das nossas vidas logo passará.

Não há notícia ruim. Tenho até uma que me parece bastante alvissareira. Ao que tudo indica, não tardará o dia em que estarei estabelecido na cidade de Rio Branco, capital do Acre, onde desenvolverei as atividades para as quais fui preparado pela Faculdade e pela vida. Talvez em um ano. Aí, sim, será muito melhor porque tu podes até não gostar do seringal, mas a cidade é bem bonita e arranjada, com cinema, sorveteria, clube, praça, comércio e uma igrejinha bem simpática, até.

Quero que você me faça a fineza de ir ao Banco do Pará para pedir o saldo da conta em que vem o dinheiro do Ceará. O gerente, Seu Alfredo Benevenuto, passará uma declaração com o movimento dos últimos três meses e você pedirá para que o seu pai a guarde no cofre da firma. Em meados de abril, estarei enviando mais uma boa quantia que deverá, também, ser depositada na citada agência bancária. Estamos cuidando do nosso futuro.
Devo lhe dizer que homem que é homem não deve se arrepender mas, se arrependimento matasse, eu já estaria esfolado e ainda vivo só porque reina em mim, soberana e crescente, a saudade que muito me magoa o peito. Com muitos beijos e abraços do teu, eternamente,
Melqui.

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