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Reconhecimento

Um velho adágio judaico nos diz que não podemos escolher a forma do nosso destino, mas podemos dar-lhe conteúdo. Aquele humano perspicaz que procura a aventura bem sucedida encontrá-la-á, dependendo da medida da sua coragem, do seu esforço, da sua pertinácia. O que procura o sacrifício será sacrificado segundo a medida da sua pureza. Eu, por exemplo, tive boas aulas com bons professores, estudei por mim mesmo e não poupei os meus próprios esforços.

Numa análise escrita em bom papel, aí pelos doze anos, afirmava: sou um garoto de muita sorte, em que pese os achaques dos quais fui acometido ainda na primeira infância. Um simples quebranto, misturado a um ventre caído e suas seqüelas, prostraram-me seriamente e me fizeram um anjinho esquálido até os dois anos. Assim Deus quis…

Mas, então, ELE resolveu brindar-me com o que há de bom e com o que há de melhor.

Primeiro, nasci de um anjo, minha mãe, que vai aos extremos quando os seus pensamentos se voltam para o futuro dos seus. Melhor é que, mesmo em sonhos, esta é a sua grande preocupação. Depois, tenho um pai zeloso que, mesmo trabalhando de estivador feito um camelo ou um dromedário, e caçando bichos da mata como um gavião ou um felino, não se descuida da boa alimentação que conta, inclusive, com verduras frescas de uma horta doméstica de uso exclusivo da família.

A avó ajuda na criação, como boa cearense, entre carinhos e sopapos. Uma irmã de cria-ção, Regina, ensinou-me a ler e, ainda aos cinco anos, já era eu alfabetizado e lia de carreirinha para o espanto dos vizinhos da minha província pequenina. Aos sete, fui para a escola e por lá tive o grande prazer do convívio com professoras de almas cheias de amor e boa vontade, muito especialmente a Enedina Sant’Ana de Menezes e a Orfisa Camelo Bacelar, professoras primárias. Esta última, inclusive, iniciou-me nos exercícios numéricos, isso, de graça, enquanto quebrava castanhas com as quais o marido fabricava sabão para o sustento familiar. Que Deus as abençoe!

Ao término do curso ginasial  –  um período de muitos esforços, no Colégio Divina Providência – ganhei de presente do governador Jorge Kalume um terno de tergal verão, e mais a gravata Rochette, com os quais recebi o diploma e fiz discurso retumbante; pelo menos é esta ainda hoje a minha opinião pueril.
Sempre estudei gratuitamente, mas em colégio particular, e grande parte disso é devido aos zelos de minha mãe que, ousadamente, foi pedir bolsas de estudos para os filhos ao então deputado federal José Rui da Silveira Lino, com a intermediação de Guilherme Zaire. Os meus cursos superiores, inclusive pós-graduações em nível de Mestrado e Doutorado, foram feitos em universidades públicas, como a Unicamp, sem pagar um tostão, mas, bem ao contrário, ganhando gordas subvenções financeiras pagas pelo Governo Federal.

A família, o colégio e a comunidade, extremamente católicos, foram os responsáveis pela minha inserção entre os que comungam a fé católica apostólica romana. Fui sacristão e fiz trabalhos burocráticos, de datilografia, no escritório do Padre José, um juiz de paz que registrava as crianças e casava os pais, no civil.

Em casa, o irmão Marcos era  –  e ainda é  –  excelente com os números. Durante os quatro anos do ginásio ele não conseguia tirar menos que nota dez em todas as disciplinas… E as provas ficavam afixadas no mural do colégio, para que todos se espelhassem naquele exemplo maior para os xapuris. É claro que a ajuda dele era diária, à luz de candeeiro, a partir das quatro da matina.

Um dia, depois de um resultado não tão brilhante, ainda na primeira série do ginásio, a Irmã Maria Crucifixa, professora ranzinza de Matemática, soltou para este poeta arredio a seguinte frase:

– Seu Zé Cláudio! Você tem a obrigação de ser igual ou melhor que o seu irmão Marcos.

– Cooomo? Pelo amor de Deus! Ele é muito fera! – Foi só o que consegui responder.

Foi por esta época que entrou na minha vida mais um anjo. Aliás, há muito ela fazia parte do cotidiano dos nossos. Primeiro porque, quando solteira, morava na casa dos pais, a vinte metros da nossa residência. Depois, já casada, percorria diariamente o caminho entre a nova e a antiga residência o que, obrigatoriamente, levava-a a passar, ali, bem pertinho, pela nossa calçada. Uma dor de barriga que fosse, e lá já estava ela com uma dose de elixir paregórico a nos oferecer, sempre com um sorriso completo incrivelmente cativante. Uma luz!

A Professora Raimunda Euri Gomes de Figueiredo, por cinco anos a fio, ensinou-me os segredos da gramática, indo da fonética e da ortografia, passando pela morfologia e chegando à sintaxe… E eu até que aprendi um bocado… Quase tudo. Também, pudera! Com uma professora de tal naipe, não havia como não ir adiante.

Um dia, a minha laboriosa mãe, depois de ter conseguido os favores matemáticos de Orfisa, foi à casa da musa dos xapuris e lá fez uma proposta um tanto inteligente. Eu teria aulas de datilografia e o pagamento seria feito quando desse. Ela não só aceitou a sugestão como ainda se saiu com outra pérola bem própria dos nossos:

– Ora, Nenen, você não está vendo que eu não vou cobrar nada de vocês. Diga para o menino vir aqui no horário das onze às doze.

E eu, todo lampeiro, todo fagueiro, não apenas fui, durante ano e meio, como aprendi a datilografar com uma caixinha de madeira sobre o teclado da máquina. Melhor de tudo: muitas vezes era chamado à mesa, para o almoço, onde degustava as delícias da cozinha da fada. Uma bênção!

No dia da formatura do ginásio, então, de terno e gravata, ainda ganhei de presente de uma outra tia fantástica uma camisa volta ao mundo e uma calça de tergal, um luxo, em 1974, principalmente junto a um outro adereço, um sapato cavalo de aço que me deixava mais alto uns seis centímetros.
E veja o que é a sina!

Agora, então, no último dia 23 de outubro, fui convidado a estar em Xapuri para as comemorações alusivas aos oitenta anos da madrinha da minha aventura bem sucedida. De presente, um livro, do poeta para a professora, e mais a crônica que lhes levo, agora, ao conhecimento.
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CRÔNICA POÉTICA LEVEMENTE ADOCICADA PARA A MOÇA QUE SORRI
Brisa da manhã de verão, ar puro que busca o orvalho e cantigas de galos em quintais arejados que se organizam para, em conjunto, tomarem parte enquanto atores felizes do grande concerto do mundo que acorda, agora, vagarosamente, preguiçosamente.

Ramos de orquídeas que se entortam cheias de respeito, muito mais por deferência e galanteio que por obediência cega ao que manda a mãe natureza.
Do jarro de louça branca pendem os talos delgados de um antúrio plantado no outono que passou de cujas flores ainda são botões.

Cores quentes e febris de primavera, feito as azaléias que enfeitam o lar, colorem os sonhos rubros, adoçam o espírito e o coração.

A folhagem do açaí se mistura à da mangueira que lhe afaga docemente, como a clamar por ventos mais incessantes em nome da mansidão da aragem que faz festa na manhã ensolarada.

Riso de criança, dobre e redobre de sinos natalinos, alegria juvenil de lábios pintados, rouge, carmin, pouco baton, diadema e brincos simples de moça que brilha por brilhar, vive da luz própria, mas não se acha mais bela que as demais da sua época.

Voz de veludo, alma de menina que nasce ao primeiro raio da aurora e cresce e viceja todo dia ao compasso de uma música que embala todo o solar pintado em cor de rosa.

Janelas graves que se abrem ao sol do outono iluminado que faz brilharem o divã, o aparador, a petisqueira, os móveis de uma herança rica em origens, às vezes lusas, às vezes mouriscas, às vezes, simplesmente, amazônicas.

Vaso de jade, cortina de véu, voal e seda, deslizantes ao vento que balança e se curva perante a altivez da grande dama.

Desperto do sonho em uma terra dourada, de flores amarelas e vermelhas e gosto e cheiro de almíscar almiscarado. Durmo mais e acordo, agora, em uma planície esverdeada cheirando a arbustos pequenos, tipo bredo estudante novinho em folha, que ali, bem ali, naquela pequena praça pública, foi plantado, regado, cuidado.

E ela, também, floriu e frutificou sob a luz do sol causticante e debaixo do vento bravio das friagens amazônicas e de oitenta primaveras febris, pulsantes, aguerridas, produtivas, no afã de um futuro que não é só meu, nem nosso.

Desenhou que desenhou e pensou e pensa o futuro de um mundo todo que, rejubilado, criou-a, de menina sabida a musa inteligente, de mulher e esposa a dama envolvente, em vista da alma iluminada e serena, de cidadã respeitável à honorável matriarca da minha província pequenina, com o coração sempre cheio de amor para oferecer, de porta em porta, como os mil favores feitos a toda uma comunidade no decorrer de apenas um mês da vida com que nos brinda Deus todo santo dia.

Já nem bem amanheceu e já estamos no outono dos anjos do sol que se põe …

– Minha querida fada, em ti a minha poesia vive e viverá. Eternamente, Zé Cláudio do Gibiri…, e da Nenem.
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Num resumo apressado, certo é que trabalhei desde os dez de idade. Vendi mingau e bribotes feitos por minha mãe para os estivadores amigos de copo e de cruz do meu pai. Fui servente de pedreiro e datilógrafo. Como o ex-presidente americano Thomas Jefferson, desde muito cedo passei a acreditar muito na sorte ao verificar que quanto mais trabalho, quanto mais me esforço, mas a sorte me sorri.Em verdade, é muito difícil necessitar de inteligência para ter sorte; muito mais fácil é precisar de sorte para ser inteligente. Desculpem-me!

* José Cláudio Mota Porfiro é cronista de Xapuri.

 

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