Nesse último feriadão prolongado, apesar de considerar tais feriados exaustivos, estúpidos e desnecessários, isolei-me para meditar, ao abrigo de qualquer olhar ou presença indiscreta. Remexendo meus alfarrábios (livros antigos) dei de cara com dois opúsculos: Um, A arte de morrer, de Padre Antonio Vieira (1608-1697), com organização e apresentação de Alcir Pécora. O outro, Indagações sobre uma vida melhor, de Dom Hélder Câmara (l909-1999). Em A arte de morrer ou Os sermões de quarta-feira de Cinza, padre Antonio Vieira, articula magnificamente, que “as artes ou ciências práticas, não se aprendem só especulando, senão exercitando.
Como se aprende a escrever? Escrevendo. Como se aprende a navegar? Navegando. Assim, também se há de aprender a morrer, não só meditando, mas morrendo. Saber morrer é a maior façanha. Diz-nos, ele!
Da leitura que fiz do livro, destaco o texto que mais se aproxima dos dias atuais, se bem que temas sobre a morte sempre são coevos. Padre Vieira, desgastado com a indiferença do Príncipe D. Pedro, retira-se para a quinta que a Companhia de Jesus possuía em Carcavelos, aí por volta de 1677, escreve a Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador em Paris, e que era, então seu mais assíduo e íntimo correspondente: “Agora me parece que começo a viver, porque vivo com privilégios de morto”.
É exatamente assim que vejo a minha existência hoje. Não tenho o privilégio de aprender a morrer, não há mais garantias para uma velhice tranqüila, pois a morte que sempre espreitou o homem (genérico) de longe, hoje se faz mais presente, atua através dos mais variáveis mecanismos. Morte, que se utiliza dos avanços tecnológicos para matar mais rapidamente. Então, por mais que eu me esforce para aprender a morrer, posso ser vítima a qualquer hora da violência do trânsito ou da sanha assassina de milhares de moleques que se matam e vivem a matar. Contudo, é sempre bom relembrar o brilho oratório e literário dos sermões de Vieira e, principalmente sua argúcia estilística do barroco, caracterizado por uma atmosfera artística e cultural carregada de conflitos entre o espiritual e o temporal, entre o místico e o terreno.
Quanto ao outro livro, Indagações sobre uma vida melhor, de Dom Hélder, antes de folheá-lo, viajei um pouco; remeti meu pensamento para uma reunião pública no ano de l967, em Manaus, tendo como orador e centro dos debates o irmão dos pobres (era assim que o Papa João Paulo II o chamava) ou o santo rebelde rótulo do documentário sobre sua vida. O evento fazia parte, daquilo que a imprensa da época chamava de cruzadas que Dom Hélder realizava pelo Brasil afora, pregando um mundo mais justo, fraterno e cristão. O Ginásio do SESC estava superlotado de, na maioria, professores e estudantes, dentre os quais este articulista, um jovem de 18 anos entusiasmado pelas pugnas sociais. Numa noite de discussões acaloradas, crivamos Dom Hélder, com perguntas: sobre o novo momento político brasileiro, uma vez que a ditadura militar, que duraria 20 longos anos, estava no seu alvorecer; questões éticas envolvendo a Igreja Católica e; principalmente sobre a pobreza e os pobres, bem como a respeito das desigualdades regionais, muito visíveis naquela época. Uma experiência memorável!
O livro, indagações sobre uma vida melhor, retrata exatamente essas cruzadas de Dom Hélder, só que para um público de terras além-mar. Em junho de 1983, por iniciativa do seminário católico La Vie (A vida), Dom Hélder fez extensa viagem pela região ocidental da França. Rennes, Nantes, Angers e Laval, entre outras, reuniam verdadeiras multidões que desejavam ouvir o Arcebispo de Olinda falar sobre “a esperança dos pobres”.
Dentre as muitas perguntas, por escrito, feitas pelo povo francês ao amigo dos pobres, dada a exigüidade deste espaço, destaco apenas uma, bem como a resposta de Dom Hélder:
– Não creio mais que o homem seja capaz de se auto-limitar em sua volúpia de poder, de dominação, de bem estar. Já não existe paz verdadeira até mesmo no seio da família, as nações, com efeito, são condu-zidas por seus interesses, principalmente as nações ricas. Diga-me, Dom Hélder, se podemos ter alguma esperança?
– Ah, como eu gostaria de ter diante de mim, cara a cara, os que me fazem perguntas como essa! Imagino que se trate de pessoas idosas, não apenas em termos biológicos, mas no que se refira aos sentimentos e à imaginação. Os jovens, na idade e no espírito, jamais teriam dúvidas desse tipo! Ser jovem é ter razões de sobra para viver, e elas constituem a própria base de sua esperança!
Quanto aos idosos e fatigados, eu diria apenas: meus amigos, é provável que vocês tenham sofrido demais, hajam sido vítimas de enganos e mentiras, e por isso se vejam traídos em suas esperanças!
Eis aí, leitor um bom caminho, de maneira especial para velhos pessimistas, dos quais eu sou oprincipal, de fazer a vida melhor. Basta encará-la com o otimismo dos jovens!
Grande Dom Hélder Câmara, qualquer hora dessas a gente se vê de novo!
* Francisco Assis dos Santos é professor e pesquisador bibliográfico em Filosofia e Ciências da Religião. E-mail: [email protected].