O que se pode dizer, afinal de contas, sobre essa recente calamidade ocorrida na região serrana do Rio de Janeiro, que ainda não tenha sido dito exaustivamente pelos meios de cumunicação. Nada mais a acrescentar ou subtrair do terrível evento. O pior já passou. Agora é trabalhar, pois a vida continua, é o que mais se ouve por aí.
Entretanto, se nos detivermos a pousar um olhar conceitual e reflexivo sobre o infurtúnio das famílias, independente do nível social, daquelas pequenas cidades serranas, salta aos olhos a sociabilidade espontânea e comovente, numa união quase associativa, dos que foram diretamente afetados pela tragédia. Foi uma comoção geral de solidariedade física, espiritual e psicológica de uns para com os outros, alguns sepultaram seus próprios mortos.
Solidariedade que sobrepuja, pois continua acontecendo, a fraternidade universal e se particulariza na “ternura parentesca” como se todos fossem da mesma família, do mesmo sangue. Tal garra associativa só encontramos nos seus rudimentos, entre as abelhas e as formigas ou entre os cavalos selvagens em perigo que unem cabeça com cabeça, formando um cordão sanitário de coices. Essas espécies, para minha vergonha, continuam destacadamente mais sociáveis do que a “sociedade de homens e mulheres da era cibernética”.
Admirável igualmente, num mundo de homens extremamentes egoístas, foi constatar que em meio a tanta desgraça, sobejou entre os inditosos grande benevolência; tanta bondade contrastando com tão pouca justiça. Provavelmente porque a bondade é resultado de um altruísmo expontaneo, e a justiça depende de raciocínio e julgamento. Essa surpreendente boa ação, em detrimento da justiça, se assemelha a doçura do coração de uma mãe por seu próprio filho, na maioria das vezes, é pródigo, as mulheres mães são, em relação a seus filhos infelizes, menos justas e abundam em boas ações.
Todavia, a principal impressão colhida da catástrofe foi o sofrimento ou a dor. Repórteres de telejor-nais, jornais e revistas famosas esbanjaram palavras sinônimas para explicar o sofrimento do povo das cidades afetadas pelos deslizamentos: angústia, aflição, amargura, desgraça, etc. O Brasil inteiro, em voz uníssona, dizia: a dor é grande! No entanto, o que é sofrimento ou a dor? Penso que o problema do sofrimento humano é assunto, antes de qualquer ciência, da filosofia.
Filosoficamente, sofremos quando nos é ou são tirados os prazeres, sejam os naturais e necessários (comer, beber água, dormir, etc.); sejam os naturais não necessários com suas variações supérfluas; sejam os naturais e vãos, como as riquezas e o poder.
Quando estamos acostumados com algum bem-estar e repentinamente perdemos, principalmente de forma trágica como foi o caso dessas famílias que viram anos de trabalho ser arrastados em poucos minutos pela violência das águas em grande volume e velocidade levando tudo e a todos de roldão, trazendo destruição e morte, então sofremos.
Tem ao mesmo tempo a questão afetiva: a casa e o lugar ou qualquer outro bem de consumo; os animais de estimação; a pessoa amada que se vai porquanto quis ir ou porque morreu. Essas perdas nos trazem pequenos e grandes sofrimentos. O sofrimento dessas famílias, especialmente das mais abastadas, da região serrana é grande, porque viviam prazerosamente, e quanto maior for o deleite perdido, maior a dor ou o sofrimento. Em outras palavras, o sofrimento humano é ocasionado pela privação daquilo que nos traz felicidade, prazer ou alegria: a prisão é a negação da liberdade; a morte é a privação da vida; a fome é a ausência do alimento; a sede é a privação do saciar-se com a água; a escuridão é a privação da luz; o caos é a negação da ordem; a doença no corpo humano é a falta de saúde plena; etc.
Dentre as muitas lições, que essa desgraça pública deixou posso pontuar, além das impressões acima, duas: a primeira é que a maior força na face da terra, ainda é a força de vontade de homens e mulheres de bem. A segunda é que a cada dia aumenta, nos fortes, nos poderosos e nos espertos sem escrúpulos, a capacidade de manipulação e os meios de escravizar os fracos. Realidade que nos remete a uma urgente necessidade de se estabelecer uma moral capaz, como queria o filósofo Emmanuel Lévinas, de proteger o homem contra o próprio homem.
* Francisco Assis dos Santos é professor e pesquisador bibliográfico em Filosofia e Ciências da Religião. E-mail: [email protected]