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Desolação

O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE   CAPÍTULO XXIX
Do umbral da janela do meu amplo aposento, vejo a calma incessante do rio que corre no mesmo ritmo, sem se importar com as vidas que tanto dele precisam, de noite e de dia. Aqui, a alma de tudo é o rio que se arrasta entre os barrancos que lhe prestam cerimônia. São três da tarde. Por horas não ouço sequer o barulho dos mosquitos que não são poucos. O pensamento viaja como a água doce que não se deixa por nada amargar ou importunar. Vem-me à lembrança um texto de autor esquecido segundo quem a tristeza é um livro sábio que se tem no coração e que nos diz centenas de coisas. Ela nos impede de apodrecer como os cogumelos debaixo das árvores e pouco a pouco vai fabricando uma provisão de ensinamentos para a vida.

Já no Livro de Eclesiastes está escrito que nós não nos devemos deixar dominar pela tristeza e nem nos afligir com os nossos pensamentos. É preciso iludir as nossas inquietações, consolar o nosso coração e afastar para longe a tristeza, porque a tristeza matou a muitos e nela não há utilidade nenhuma.
Enfim, estou aliviado das minhas súbitas divagações pelos terrenos sombrios dos maus pensamentos.

Falecera de morte morrida o velho benzedor Chico Trindade, de noventa e pancada de anos. Viera de Cabrobó, Rio Grande do Norte, e chegara à região há muito tempo, em companhia de Raimundo Sargento, o desbravador e primeiro dono do Seringal Albrácia, logo depois da revolta. Diziam-no avô de Duvige, mulher de Zé Pitéte, um dos comboieiros da Boca do Lago.

Era um desses insípidos domingos de junho, por demais rotineiros, em que pese o frio horrível que fazia. A temperatura andava pela casa dos doze graus muito bem ajudados por um vento severo, cortante. No barracão, uma bacia pequena cheia d’água foi colocada no jirau e amanheceu com gelo. De madrugada, quando se podia afirmar que o frio andava pelos seis ou sete graus, a morte houvera visitado o indigitado rezador enquanto este dormia do lado de fora dos quartos da casinha, no avarandado. Morrera de frio, o coitado, muito embora ninguém tecesse comentário algum, para não fazer com que os responsáveis pelo veterano caíssem na realidade. De manhãzinha, encontraram-no duro e ainda com pelos e algumas pulgas a lhe percorrerem as barbas brancas. Segundo avaliei depois, na hora do aperreio, o homem se agarrara a um cachorro de bom porte que se desvencilhou dele e foi para o forno de uma casa de farinha ali perto para aquecer-se entre as cinzas.

Como é natural desde que o mundo é mundo, principalmente entre os sertanejos nordestinos, as pessoas em velórios começam a falar baixinho e só depois é que começam até a rir, isto, devido a força da bebida alcoólica que faz parte do ritual.

Fiquei debaixo de uma das mangueirinhas que enfeitam as casas dos comboieiros. Uma figura meio fantástica, saída do burburinho que se formara ao redor das caixas de aguardente por sobre as quais jazia o defunto, tomou aproximação de mim, sorrateiramente. Deu bons dias. Acendeu um cigarro de palha de milho, aqui chamado porronca, pigarreou levemente e começou a falar da morte, da transitoriedade da vida, dos sofrimentos a que estamos sempre sujeitos neste vale de lágrimas e, de repente, ficou calado, pensativo, parece-me, chorando.

Certo é que conversei bastante com este homem de sessenta anos, um seringueiro chamado Sororoca. Era um crioulo alto e espadaúdo vindo dos rincões do Maranhão. A fala, mansa, os gestos, lentos e comedidos. Os pés eram tão grossos que não careciam de nenhuma arriata de tira de couro, à moda do cangaço, muito menos de sapato de seringa. Arremedava em forma de assobio, ou de qualquer grunhido seu que fosse, tudo o que é tipo de animal da mata, principalmente, os pássaros. Às vezes colocava os dedos das mãos, juntos, à boca e, de repente, saía o canto do bacurau, o ronco do queixada, o uivo do cachorro do mato ou irara, o assobio do macaco sõin, dentre outros. Quando o álcool lhe subia até as têmporas, então, vinha uma vontade de declamar poesias sertanejas e cantar toadas do tempo da escravidão.

A cachaçada era alusiva ao domingo, mas, também, estava-se a beber o defunto. Aí pelas duas da tarde, então, depois da bóia farta patrocinada pelo patrão, o velório foi esquecido pelos homens. Só as mulheres e uns três abstêmios deram prosseguimento ao funeral.

Um pouco mais tarde, aí pelas quatro, partimos para enterrar o velho Chico Trindade. Cavaram um buraco raso em cima de um morrete, lá longe, no aceiro do campo, onde já havia umas dez ou doze sepulturas bem antigas. Eu fui à frente rezando o terço, fazendo as vezes de padre. Ao meu lado, um pouco alcoolizado, acompanhando a reza em voz alta, seguiu o Sororoca. Quando chegamos ao último destino do velho sertanejo, jogaram-no na cova. Foi aí, então, que eu vi a quanto pode chegar os níveis da miserabilidade do ser humano. O Zé Pitéte, moço honrado, metido a genro do morto, pegou no punho da rede em que o transportavam e disse:

– Égua! Essa rede tá novinha em folha e me custou uma fortuna! – Dito o que arrastou a peça deixando o corpo do velho bater de cara no barro. E não teve jeito que desse jeito. Assim foi enterrado o benzedor Chico Trindade.

Depois, então, o Sororoca pediu licença e, de cor e ritmado, começou a cantar, em forma de ladainha, uma melopéia chamada Encomendação dos Mortos, rito final dos enterros muito comum entre o povo do sertão:

 Perdão, meu Jesus!
 Perdão, Deus de amor!
 Perdão, Deus clemente!
 Perdoai, Senhor!

 Eis-me, aos vossos pés,
 Eu, grande pecador
 Meus enormes crimes
 Perdoai-me, Senhor!

 Grande pecador
 Lamento com dor
 Estou arrependido
 Perdoai, Senhor!

 Bendito, louvado seja
 A paixão do Redentor!
 Que por nós sofreu martírio,
 Morreu por nosso amor!

 Os céus cantam a vitória
 De nosso Senhor Jesus,
 Cantemos também na terra
 Louvores à Santa Cruz!

 Humildes e confiantes
 Levemos a nossa cruz
 Seguindo o sublime exemplo
 De nosso Senhor Jesus!

 (Falado) Bendito, louvado seja
 O Santíssimo Sacramento!

 Ao morrer crucificado
 Teu Jesus é condenado
 Por teus crimes, pecador!
 Por teus crimes, pecador!

 Com a cruz é carregado,
 Vai morrer crucificado…
 Vai morrer por teu amor!
 Vai morrer por teu amor!

 Com o madeiro oprimido,
 Cai Jesus desfalecido…
 Vai morrer por teu amor!
 Vai morrer por teu amor!

 (Falado) Os anjos, todos os anjos,

 Louvando a Jesus, para sempre, Amém!
Em uma colocação de nome Zé Júlio morava uma família grande, de oito filhos e mais, é claro, D. Maria Mendes e Seu Mané Marçal, os pais. Ele viera sozinho do Seringal São Pedro, Rio Xapuri, para enfrentar a mata, encontrar as seringueiras em abundância na região, abrir as estradas de seringa e fazer, ele mesmo, uma casa de nível acima do bom, para os padrões do seringal. Há cinco anos já lá se estabelecera e ia muito bem porque no último ano conseguira tirar mil e oitocentos e quarenta e cinco quilos de borracha, isto, sem contar o sernambi.

Ajudado pela véia e pelos filhos mais velhos, a prosperidade chegou a galope. Vi ali menino ou menina de cinco ou seis anos dando comida para os porcos e galinhas, zelando a casa de assoalho de madeira serrada e plainada, varrendo o grande terreiro e até cozinhando, tudo na maior disciplina. Enchia os olhos dos muitos visitantes a limpeza e a organização. O fogão de barro era branquinho porque nele era passada, todos os dias, uma argila branca –  tabatinga  –  que lhe emprestava um ar de recém-construído. As panelas, em quantidade suficiente para o tamanho da família, eram reluzentes de dá gosto porque eram lavadas com areia do igarapé e sabão fabricado por eles mesmo. Havia pratos de louça e até colheres. A comida era de primeira qualidade para os muitos visitantes que por lá iam passear para chupar laranja ou tomar garapa da boa, comer rapadura e, claro, pegar uma bóia de graça. Nas horas de almoço ou janta, todos sentavam à mesa banhados com sabonete, penteados, quietos e ainda rezavam para que Deus os protegesse sempre e mais.

No aniversário de quinze anos de Maria da Conceição, a Mariquinha, fui apenas enquanto convidado especial, uma vez que ainda não me tornara padrinho de crisma da garota já alta, de boa estatura, para os padrões locais, e inteligente, querendo, inclusive, aprender a ler. Além do forró tocado das sete da noite às sete da manhã, por Mundico Sanfoneiro, o mais afamado do alto Acre, a comilança foi exagerada. Interessante foi o fato de não apenas haver bebidas como vermute, cortezano, Martini e cachaça. Havia também quatro engradados de cerveja de molho num poço assombreado do igarapé há uma semana. Tudo seguira em lombo de burro para a Colocação Zé Júlio, a três horas de madeira adentro, de distância puxada a muito fôlego. Segundo avaliei depois, uma simples festa de aniversário tornou-se um festival com gente vinda até de Xapuri, isto, em vista dos níveis de prosperidade alcançados por Mané Marçal e sua turminha educada e gentil. Dá até saudade.

Mas veio, então, o infausto. Com a intenção de aumentar o tamanho do campo onde criava umas três ou mais dúzias de reses, foi necessário derrubar uma faixa de mata, a machado, como não poderia deixar de ser. Eis que, no corte de uma árvore maior, um galho se desprendeu lá de cima e veio contra a cabeça do Cumpade que sequer disse um ai e já tombou morto. Fui lá para as exéquias do bom amigo que ficou enterrado na colocação aberta por ele mesmo, um desses heróis anônimos da história desse nosso chão. Então, em três dias, toda a família foi para Xapuri, de batelão, para a missa do sétimo dia. Nunca vi tanto sofrimento dos garotinhos e garotinhas, e mais a mãe, todos, impecavelmente, vestidos de azul claro em respeito ao desaparecimento do pai. (Nunca me deram explicação para as razões da cor).

Depois, passados dez ou onze anos, já em Rio Branco trabalhando na Mesa de Renda, fiquei sabendo por intermédio de um também compadre da família Marçal, o Gibiri, que viera a tratamento de saúde de Xapuri, que D. Maria Mendes, a matriarca, tomara para si as rédeas da vida da família e as coisas continuavam prosperando. Que Deus lhes abençoe!

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