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Realidade nua e crua

O Sororóca é um desses cabras cheios de bons préstimos. Bom para com todos e muito menos para consigo próprio. É solteiro há uns vinte ou mais anos. A mulher, uma negra furnida que só gosta mesmo é de luxo e vida mansa, ele perdeu num jogo de cartas marcadas por ela mesmo, para um tal Coroné João Gabiru, dono do Polopongó, um seringal do Médio Amazonas. Num acerto de contas de fim de fabrico, ele ficara devendo, segundo o próprio, mais ou menos, um conto e um canudo fora o dinheiro miúdo para o seringalista que já freqüentava desde algum tempo as alcovas e as poucas vergonhas de Odete, a ex-esposa. A quantia relativa à dívida ele nem tinha certeza porque, como na superior maioria dos casos, não sabia ler um ó sentado na areia. E os elementos débito e crédito, como sempre, haviam sido anotados à lápis em um borrador que logo desapareceu.

Então, combinado ficou que a mulher luxenta ficaria com o Coroné Gabiru e ele poderia ir-se embora para onde quisesse com as contas zeradas.
Homem de mais de metro e oitenta, maranhense, desconfiado que só ele mesmo, voltou pra barraca já sem a Nêga com a finalidade de buscar uns poucos pertences a que tinha direito, menos a espingarda e a poronga que já não eram dele. Apanhou então um velho Smith & Wesson, o revólver escondido debaixo da barraca com o qual havia chegado à colocação e, de madrugada, arribou aí pelas três. Querendo ser mais esperto que a cabroeira do patrão, pegou o varador e fez um atalho por dentro da mata de forma a não mais passar pelo barracão do Coroné, como se o homem fosse um santo e quisesse apenas a mulher vistosa e cheia de quentura.

– Dexastá… Na manhecença do dia, na travessia do igarapé Tijuco, ouvi foi só o pipoco e caí na água. E vieram mais dois tiros e mais outros três. O inverno ainda mal tinha chegado e o rebojo da água era grande… E foi o que me salvou… Mergulhava aqui e saía lá acolá, no rumo de baixo, isto, até mais ou menos umas dez horas da manhã, segundo tirei pela posição do sol.

O Coroné João Gabiru mandara tocaiar o Sororóca e, desde a tarde do dia anterior, atrás da sapupema de um samaúma, lá já estava o Tonico Gago armado até os dentes com duas repetições e mais um revólver calibre 38. Muito tempo depois, ele soube que o bandoleiro ficou sem ganhar os quatrocentos réis prometidos porque a sua orelha e os seus pissuídos  –  do alvejado  –  permaneciam nos seus devidos lugares.

Em três dias, chegou à sede do Seringal Ôco do Mundo dizendo que, durante uma caçada, havia sido atacado por uns índios de cara preta e se perdera na mata tentando escapar. Deram-lhe comida e pouso. Para a sorte da vítima, o seringalista era homem bom e, acima de tudo, lá no Polopongó, ele havia sido dado como morto, e ninguém se importou em fazer buscas pelo corpo de um dizinfiliz como o Sororóca. Em retribuição aos favores recebidos, passou quinze dias rachando lenha e, depois, foi recrutado para levar de balsa, através do rio abaixo, com outros companheiros, uma partida de duas mil pélas de borracha em direção à cidade de Oriximiná. Aí chegando, ouviu falar do Acre, uma terra onde se cata dinheiro com um cambito. E se foi.

Ao Sororóca, já na Boca do Lago, deram uma colocação da linha do meio  –  central  –  a apenas uma hora de viagem, com três estradas para cortar. É o bastante para quem vive sozinho e não deixa de ir olhar a sua conta, semanalmente, agora sob a minha responsabilidade. Há saldo, sim.

Segundo diz o próprio, todo janeiro, aí pelo dia quinze, ele ruma para Xapuri e lá tira o atraso e a reima de macho, enfiado nos aposentos de uma Etelvina não-sei-das-quantas, de onde, aí pelo dia trinta, ele volta tendo lá deixado alguns víveres, quatro ou cinco cortes de chita, uns sapatinhos brilhosos e água de cheiro Desejo comprados nA Limitada, a grande loja dos portugueses recém conhecidos meus.

– Ano passado, ela ficou dois meses por aqui. Tem quarenta e oito anos, mas já tá toda encolhidinha, murchinha de tanto uso. Não sabe sequer cozinhar. Só gosta mesmo é de limpeza, de ficar cheirosa o dia inteiro, de pintar os beiços e de xamegar… Ela me chama de meu nêgo!…

Dona Nenzinha, a patroa do Boca do Lago, é mulher bem simples, educada e sem pedantismo. A história do Sororóca já é do seu conhecimento desde alguns anos. Segundo ela me conta, este é mais um exemplo dentre milhares em que as mulheres são tomadas dos seringueiros pouco produtivos pelos patrões.

– Aqui perto mesmo, no Seringal Iracema, havia um cabra ainda com uns vinte e dois anos  –  Laelço, parece que era o nome dele  –  e já com dois filhos pequeninos, de um e de dois anos, e uma mulher muito formosa de nome Raimundinha. Ele, metido a bonito, havia roubado essa dona e chegado ali para trabalhar duro. No fim do ano, isso, há uns cinco anos, na hora do ajuste de contas, o homem chegou ao barracão e o guarda-livro observou que ele tinha produzido apenas quatrocentos e poucos quilos de borracha em um ano inteiro de trabalho. E viu mais: estava com um débito muito maior que o crédito obtido pela produção anual. Estava devendo cento e cinqüenta réis, o que poderia ser pago depois de uns três anos de muito trabalho. Como? Ele, a companheira e os filhos teriam que continuar comendo, consumindo, fazendo mais contas… Aí, chamaram o patrão que, sem dó nem piedade, ajeitou a situação que já vinha sendo costurada há dias. É que havia um tal Zé Bento, homem de quarenta anos, solteiro, trabalhador demais, que ameaçara ir-se embora porque não agüentava mais viver sem mulher… O homem produziu naquele ano mil e cem quilos de borracha!… Uma fortuna! Na mesma hora veio a palavra final. Laelço ficaria no barracão consertando uma cerca, cuidando do roçado, rachando lenha, carregando água, caçando, pescando e batendo campo, trabalhando feito um fi-da-peste, por um ano, findo o qual ele foi mandado embora campiar macaco em outra freguesia. Era, sim, um vagabundo! A tal Raimundinha, muito formosa, e os menininhos, foram para a companhia de Zé Bento, o seringueiro arrojado e próspero que vivia numa colocação arejada, limpa, com um gadinho até.

E Dona Nenzinha continuou o relato:
– Hoje em dia, dizem, eles vivem muito bem. E foi mais ou menos o que vi no ano passado quando passaram por aqui para a procissão de São Sebastião, em Xapuri. Ela toda faceira, bem vestida, os meninos chamando o Bento de pai… É assim, homem que não presta tem que dar a vez pros outros… Há tanto homem bom por aí por esses seringais precisando de uma mulher que lhe faça companhia nas horas de ócio. Eu digo pra todo mundo que Seu Pergentino, o patrão do Iracema, tomou uma decisão muito mais que acertada, inclusive, para os negócios do seringal que precisam, sim, é de gente com sangue no olho e que não se borre de medo na hora do esturro da onça. Ora, pois!

No seringal onde o Sororoca deixou a Nêga, a prática adotada era a da rapinagem descarada. Segundo ele me contou outro dia, na hora da pesagem da sua borracha, era costume do apontador colocar o pé por debaixo da balança para que, através de uma geringonça de arame qualquer, o peso da borracha fosse diminuído, isso, é claro, em prejuízo do seringueiro que, sem saber ler, analfabeto de pai e mãe, ou de canga e corda, no dizer deles mesmos, ia-se embora pensando que era justa a medida e justo era também o valor anotado em um borrador, à lápis, ocasião em que era feita outra trampolinagem. Uma simples borracha de escola apagava apenas um zero e um trezentos virava um trinta. Aqui na Boca do Lago não se faz uma coisa dessas. Por isso os negócios do patrão e da firma vão de vento em popa. É coisa de Deus. O cabra que comete uma barbaridade dessas não tarda e a conta vem em forma de uma doença feia, de uma alagação, de um incêndio, de uma quebradeira, de um filho que morre, de uma esposa que adoece e passa anos para ficar boa, e assim por diante. 

Até a agricultura, aqui ainda bem rústica, é praticada pelas mulheres e pelas crianças que já podem ajudar. A derribada é sempre de sábado para domingo, em regime de adjunto. Os roçados são pequenos e os meses de junho e julho são propícios a tal prática. Depois que tocam fogo nas árvores secas, é a vez de os demais da família fazerem a parte da enxada, plantando, cuidando, adubando, colhendo o que é plantado nas áreas localizadas sempre ao redor das barracas. Assim, o seringueiro come o que planta e não tem a necessidade de endividar-se ainda mais. Há, inclusive, moradas onde há hortas, ou há canteiros suspensos onde são cultivados coentros, cebolinhas, chicórias.

Segundo Dona Nenzinha, Deus ajuda sempre e basta que você também ajude aos outros. Não é preciso dar de comer a uma família porque isto pode se tornar vício e sublimar a malandragem. Convém dar o peixe, sim, e até a farinha e o feijão e o arroz mas, depois da bóia, antes de o candidato bater na barriga e dar o primeiro arroto, é hora de ensinar o caminho do rio ou do igarapé, dar-lhe anzol e linha, apontar a enxada e dizer onde e como são retiradas as melhores minhocas. É disso que o Divino gosta. Por isto, muitos dormem sem remorsos. É esse, sim, o sono dos justos.
Dona Nenzinha, ao defender o ponto de vista de quem está na sua posição de patroa, cheia das boas virtudes, disse a mim em uma certa ocasião:
– O patrão da Boca do Lago não deixa que ninguém seja roubado, mas não se permite enganar.

Ela se referia ao fato de que a borracha verde quando vai chegando ao barracão durante o ano tem um peso, é claro. Depois, devido a ação do tempo, sol e chuva, ela vai perdendo consistência e, em dezembro, já pesa uns sete a dez por cento a menos.

– A borracha seca é mais leve uns oito quilos e, pesada no fim do ano, tem o valor diminuído, o que é justo. Em abril, por exemplo, uma péla de borracha pesa sessenta quilos e, em dezembro, a mesma pesa cinqüenta e dois. O preço justo é o referente à última pesagem, o que não significa prejuízo nem para o seringueiro, nem para o seringalista. É a natureza que cobra a parte dela, talvez.

E Dona Nenzinha disse mais, numa outra vez, naquelas conversas de depois do almoço ou da janta em que o marido não falava uma palavra sequer e ficava palitando os dentes com uma felpa de paxiúba, sem nenhuma pressa. Era, mais uma vez, a defesa do ponto de vista do dono do negócio, do capitalista:

– Preste muita atenção ao que acontece com a mercadoria vinda de Belém. Um carregamento pequeno, por exemplo, custa 1.000 réis. Só que essa carga passa três ou quatro meses viajando de navio, de lá pra cá. É claro que os custos são aumentados e repassados aos seringueiros, mas sem exorbitar, sem roubar. Por que é que o seringalista deve ficar com esse prejuízo sozinho? Patrão bom é só patrão bom e não é pai. Com filho também não se faz assim, porque você pode estar criando um vagabundo. Se assim fosse, se o seringalista assumisse todo esse risco, o negócio da borracha nunca teria dado certo.

Só para se ter uma idéia aproximada do tamanho do esforço do seringueiro que buscava a prosperidade real através do trabalho na mata, um dia, já enquanto funcionário da Mesa de Renda ou Coletoria Federal, em Rio Branco, conheci um fulano de tal de nome José Braga dos Santos, o Zé Chicó. Ele portava um diploma de soldado da borracha mirim, com selo da Presidência da República e assinado pelo Doutor Getúlio Vargas, o presidente, como uma espécie de homenagem ao trabalhador pelo fato de, aos quinze anos de idade, ter feito 1500 quilos de borracha no ano de 1940. Na mão do homem ainda estava uma medalha de honra ao mérito, concedida pelo Exército Na-cional pelo ato de bravura em benefício das contas bancárias dos patrões.

É bom dar mais ênfase ao fato de existirem pessoas de boa índole no meio desse negócio da borracha. Existe, sim. Digno de menção é o que ocorre aos domingos no barracão  –  a sede do seringal  –  onde moram os patrões. De manhãzinha, já começam a chegar de todos os lados os seringueiros, uma boa parte dos quais com as famílias. Aí é bênção pra todo lado. Todos vão chegando para uma prosa com os demais, para verificar o saldo, para uma talagada de cachaça, para comprar o que está faltando em casa, como o querosene, o sal, o isqueiro, dentre outros apetrechos.
Primeiro, eles se encaminham para a varanda onde está o patrão e a patroa:

– Bom dia, cumpade! Bom dia, cumade! Vem aqui, menino! Toma a bênção ao teu padrinho e à tua madrinha.
– Bença, padim! Bença madinha!
– Deus te abençoe, meu filho!

É bem emocionante ouvir o que ouço.

Depois, vem a segunda fase, que é a hora da bóia à custa dos patrões. É sempre nove ou dez capões ou galos inteiros. Às vezes, uma ou duas galinhas pelo meio, nas imensas panelas, isto, porque os bichos machos são sempre maiores que as fêmeas da espécie. A terceira fase é a cachaça da boa, fabricada no Seringal Iracema. A partir das três, então, é hora da arribada. É outra a semana. É hora de pensar no pão nosso de cada dia, para muitos que por aqui são felizes, ao contrário da maioria desses desprestigiados trabalhadores dos seringais amazônicos, onde reina a tirania e a falta de sensibilidade para com o humano.

– Louvado seja Deus! – Disse Dona Nenzinha.

– Para sempre seja louvado! – Respondi.

Não se busca muita coisa, só se quer umas boas doses de dignidade nas relações entre pessoas tão parecidas, justamente, porque vieram da mesma região, o nordeste brasileiro, em busca de sonhos realizáveis para poucos e impossíveis para a superior maioria.

* Este é o Capítulo XXX do romance O inverno dos Anjos do Sol Poente. Os demais podem ser acessados através do www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

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