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Lendas suburbanas II; da desumanidade

 

Lendas_Urbanas

A perspicácia e a sutileza parecem ter o dom de adivinhar que lisonjeiam muito mais a nossa vaidade do que todas as outras qualidades do espírito. É o que nos diz um adágio francês das primeiras épocas de Magno. Daí os imbecis que convivem em sociedade querendo tirar proveito de tudo e de todos. Urge, certamente, humanizar cada vez mais o humano.
Para se ver como são as quase coincidências da vida e do mundo, então, o garotinho de sete anos chegou em casa e pediu alguma coisa para comer. Vinha da escola. A mãe, metida a inteligente, só para enrolar a criança, disse:
– Se você conseguir sair da charada em que vou lhe meter, dar-te-ei uma maçã para que enganes o estômago. Topas?
– Sim, é claro que topo.
– Então preste muita atenção. Qual é o nome da profissão de um homem chamado Passos Dias Aguiar? – Perguntou a mãe.
– Motorista! – Respondeu o guri de bate pronto.
O menino é inteligente, sim, mas pode usar de forma desfavorável esse dom de Deus. Senão vejamos.
O cidadão em tratamento nestas tenras algaravias não é motorista ou chofer, mas um causídico criminalista de mão e rabo cheios, dessa espécie a que muitos denominam advogado do diabo, dadas as proezas do dito cujo na hora de proteger qualquer humano à margem da lei  –  assassinos, inclusive  –  ou no momento de salvaguardar os honorários que são exatamente seus não por acaso. Pense numa ratazana de tribunal!
Acode-nos, Deus Santo! Livra-nos de uma peste como a que aqui trato.
Aconteceu que um casal oriundo lá das bandas do Humaitá, Amazonas, fixou residência ali pela baixada da Cadeia Velha. A mulherzinha, estilo alma, magérrima, baixinha, nunca saía de casa a cuidar tão somente de um filho pequenino e das gentilezas para com o marido. Enquanto ele ia e vinha atrás de um emprego de carpinteiro que logo encontrou. E não somente encontrou a ocupação de que necessitava para dar sustento à família, como também achou uma diva de saias curtas ali pelas imediações do mercado da Rua Sergipe. Pior foi que a novíssima acompanhante trouxe para a vida do novo freguês, ainda, um vício desgraçado. A bela e doida rapariga gostava de se deliciar com umas tais cigarillas del diablo, ou marijuana  –   a tal cannabis sativa  –  por aqui muito conhecida como maconha, vício logo assumido pelo forasteiro amazonense.

A mulherzinha ficava em casa passando, já, necessidades, e o carpinteiro garimpava sexo à toa, e fumaça, pelas barrancas das proximidades do Mercado Velho. Eu o conheci. Foi meu vizinho.
No início, voltava à noite e trazia um quilo de carne de segunda para que lhe fosse feita uma sopa de ossos, e couve, esta já arranjada pela vizinhança. Depois, nem mais isto.
E a mulherzinha foi definhando. E o menininho, também. Os vizinhos apiedados passaram a prestar uma assistência mais sólida à pobre mulher.
Uma madrugada, então, muito perturbado pelas drogas e desconfiado de que a esquálida esposa se alimentava porque o traía, provocou tremendo entrevero e findou por aplicar martelada certeira no meio da cabeça da esposa…
Ela morreu ali mesmo e ele pegou o menino, colocou numa canoa roubada e baixou o rio no rumo de Boca do Acre. Dias depois, já armado de um argumento inventado pelo advogado do diabo, o sujeito se entregou à polícia pela manhã e ao meio-dia já estava solto, uma vez que assassinara uma esposa que o traía com todos os homens das imediações, segundo a trampolinagem advocatícia.
Os parentes da pobre mulher, em Humaitá, ainda hoje pensam que ela é viva e reside no Acre. O assassino, tornado vítima pelas maquinações do advogado do diabo, foi-se embora com a criança depois de ter sido absolvido em júri popular. Alguns presentes à farsa montada pelo rábula satânico ouviram a peça final em defesa do marido sórdido:
– Minhas senhoras. Meus senhores. Justiça seja feita. Este homem é inocente porque lavou a sua honra com o sangue de uma puta que o traía impiedosamente, enquanto ele se encarregava de levar o pão de cada dia para o sustento de uma família desgraçada pela safadeza de uma mulher sem sentimentos, uma ordinária!
Meu Deus! Aquela mulher foi mais uma dentre as tantas mártires entregues à realidade de casamentos com desconhecidos. A rua inteira sabia a verdade, mas ninguém teve coragem de se contrapor ao advogado do diabo, um grande facínora que hoje persegue o reino dos infernos.

Esta não é uma crônica em homenagem ao dia das mulheres. É uma denúncia de todas as infâmias cometidas contra pessoas que, ao se casarem, pensam estar realizando o grande sonho das suas vidas.
Em verdade vos digo, minhas irmãs! Para que ter como maridos gente de comportamento duvidoso? Só a fim de dizer para a sociedade que os têm. Muitos deles não seriam já dispensáveis? Bons esposos são, antes, bons filhos, grandes irmãos, queridos alunos e admiráveis vizinhos.
*          *          *
Assim como o autoritarismo é a doença da autoridade, o oportunismo é a doença da oportunidade. Em termos bem claros, o oportunista é aquele que busca se beneficiar com algo que não lhe pertence, mas que finda por dar algum lucro, embora por meios ilícitos e à margem dos preceitos legais.
Aí, um camarada tomou exageradas doses de oportunismo. Overdose, sim senhora. Resultado foi que ele se engasgou com a quantidade em excesso, meteu as mãos pelos pés e a doença se tornou crônica. Já não há cura. Será necessário trapacear todos os dias do resto da sua vida caninana que espero seja breve.
Esse tal senso de oportunidade contumaz pode levar, sim, o indivíduo a um gran finale extremamente carente de emoção.
Mas vejamos o que aconteceu.
O moço, gaúcho, veio da novela Araguaia e montou um escritório de negociar lingüiça, de comercializar cachaça, de vender mais secos que molhados e de meter o pau na vida alheia, isto, porque já se tornou um acreano do pé rachado, como eu, ali pelas cercanias da Seis de Agosto.
Da terra natal que não o deveria ter deixado germinar trouxe esposa loura, de olhos verdes, pele branquinha, bem forte das feições, boa que só ela. Em aqui chegando, o negócio prosperou em um ou dois anos, isto, porque as tramóias se somavam às tretas que se multiplicavam pelos ardis. Cada idéia era mais brilhante que a outra, apoiado e acreditado pela comunidade que ainda hoje o ovaciona e o tem enquanto um ás na arte da trampolinagem. Um bacana. É isso o que o cara é.
Veio então o plano mais inteligente  –  e já consumado  –  desde o nascimento desse algoz da humanidade apodrecida, o tal Chico Karlsberg.
A bela esposa caiu doente, o que era esperado há meses para que o citado projeto pudesse ter resultado. Chegando ao médico com a mulher desacordada, então, vieram as perguntas cruciais:
– A sua esposa tem alguma doença pré-existente tipo cardíaca?
– Não, senhor médico.
– Ela tem a diabetes?
– Tem não, senhor.
Prestemos atenção para a crueza do crime. O Karlsberg disse ao médico que a mulher não era diabética, mesmo sabendo que ela era, com certeza, que ela não podia nem ver os açúcares. Aí, receitaram-na um remédio com um elevado índice de glicose, o que levou a coitada à morte. Isto tudo porque ele progredira nos negócios e não mais queria repartir os lucros e os frutos destes com nenhum sócio, mesmo que esta fosse a esposa com quem tinha até um filho. Uma enfermeira, inclusive, até hoje se pune pensando que envenenou a bela com medicamento errado.
Agora, como se não bastasse, ele luta na Justiça, em Santa Catarina, para abocanhar um quinhão dos bens do ex-sogro posto que, enquanto viúvo, diz ter direito ao que o velho pai da esposa morta deixar. Lá a família nem desconfia da trampolinagem macabra do espertalhão.

E tem mais. A do sacana agora é outra, mas vai no mesmo rumo. Alguém deve morrer para que mais dinheiro corra para as suas mãos.
Em que pese a gravidade do crime anterior, o talzinho arranjou casamento com uma moça da terra só porque descobriu que o pai dela, velho e alquebrado, possui umas terrinhas bem valorizadas, no Amapá, que merecem um investimento que envolva alianças e vestido de noiva. E casou depressa…
– Ora! Eu arranjo uma doença do coração para o velho, dou-lhe um bom susto, meto-lhe num hospital público de Rio Branco dizendo que é o melhor do mundo e passo a colocar bastante sal na comida do indigente. Não passarão dois meses e eu já começo a ser dono de tudo porque sou casado no civil com a filha dele e tudo o que for dele será dela e será meu porque ela é minha esposa oficialmente. – Foi o pensamento que dá margem a um terceiro plano macabro agora contra a novinha. Ela que se cuide.
Para que as dúvidas sejam resguardadas e a fim de que por aqui flua um pouco de tosca literatura, é preciso assegurar que fatos e personagens aqui tratados não são mais que frutos do engenho e da arte deste artista menoscabado.

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