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Crime injustificável!

Tivemos, no Brasil, na última dé cada crimes aterrorizantes que abalaram a população: o assassinato da menina Isabela, com grande repercussão na mídia nacional. Tem o caso do cirurgião plástico Farah Jorge Farah que matou e depois esquartejou, usando instrumentos cirúrgicos, Maria do Carmo Alves. O caso Farah foi exaustivamente divulgado pela mídia com estarrecedora repercussão junto ao público. A crueldade do crime chocou os policiais, que consideraram o delito “pura insanidade”.

O crime protagonizado pelo jovem de 18 anos, Edmar Aparecido de Freitas, que armado com um revolver calibre 38, invadiu uma instituição escolar e atirou em alunos, professores e funcionários e depois se matou, abalou à pequena Taiúva cidade do interior de São Paulo. Neste caso específico e já esquecido por muitos, contrariando a fala do ministro da Educação Fernando Haddad sobre  o crime bárbaro cometido pelo Wellington, o caso de Taiúva é um precedente sim, não na mesma proporção do acontecido na escola de Realengo. Aqui no Acre tivemos a morte brutal e inexplicável de Ana Eunice; são tantos os casos, enfim… 

A questão é: Quem pode explicar e justificar tais crimes? Quem pode explicar o estranho e bestial comportamento do casal Alvarenga, do médico Farah, do jovem Edmar Aparecido de Freitas, dos algozes de Isabella, do matador de Ana Eunice e do extermínio das crianças na escola do Realengo?

O Brasil, perplexo e assustado com o assassinato das crianças, se move entre dois extremos: o injustificável e o desejo de justificação para o barbarismo:

O injustificável, enquanto conceito filosófico é aquilo que excede a simples oposição do não-válido e do válido; uma crueldade, uma baixeza, uma desigualdade extrema nas condições sociais que perturba crimes m sem que se possam designar as normas violadas; não é mais um simétrico que se possa compreender por oposição ao válido (Jean Nabert); são males que suscitam um pedido, às vezes desesperado, de justificação que o ato exige.

Os crimes de violência são tão velhos como a voracidade. Voraz é tudo que subverte ou consome e destrói. No tempo dos brucutus a luta por alimento ensopou de sangue o planeta e oferece um fundo bem negro à débil luz da civilização. Não deixa de ser irônico que hoje as urbes estejam ensopadas de sangue na luta não por pão, mas por drogas. Ali, na luta pelo pão, se justificavam as mortes; aqui, nas lutas pelas drogas, são injustificáveis. O homem primitivo era cruel porque tinha que ser cruel. A mais escura página da existência humana é a história da tortura primitiva, e do prazer causado pela dor alheia. Entre muitas tribos o homicídio causava menos horror do que causa hoje a nós. Grande parte desta  crueldade estava associada à guerra. Essa animalidade primitiva é totalmente irracional, à luz dos nossos códigos de ética, e nos faz pensar que o mal no homem não é apenas limitação ou privação do bem, como queria Santo Agostinho, atraso ou negatividade dolorosa.

 
Atualmente convivemos “numa boa” com matanças em massa de civis, pessoas inocentes de pequenas nações que são invadidas por outras mais potentes em armamentos bélicos. Aceitamos com alguma satisfação e até justificamos, os confrontos urbanos entre polícia e “bandidos”, a morte daqueles que consideramos maus à sociedade. Afinal, dizem por aí: bandido bom é bandido morto!

Tenho escutado dos quatro cantos do Brasil, um enxame de autoridades competentes em anomalias desse gênero dando as possíveis causas para o sinistro de Realengo. A principal, advinda dos psicólogos e psiquiatras, indica que o descontrole emocional e a conseqüente estupidez criminosa teriam como causa um  suposto “surto psicótico” ou “lapso de memória”. Sabe, leitor, sou deveras estulto para aceitar  por melhor que seja o argumento que alguém fora de si sob surto psicótico ou lapso de memória, consiga pensar em poucos minutos, numa saída cruel, perversa e premeditada, em  cortar a tela de proteção da janela (caso Isabela) e jogar friamente, numa tentativa grosseira de simular acidente, o corpo  no vazio.  O caso do médico Farah, é mais difícil ainda de imaginar. Mesmo “inconsciente” ele conseguiu manter a perícia com o bisturi, talvez por horas, e dividir o corpo pelas articulações, em nove partes. O cirurgião ainda retirou a pele de parte do rosto e do peito da vítima. E o que dizer do predador Wellington? Não, nada de surto psicótico!

Essa coisa de inconsciente é antiga e complexa. É matéria da psicologia analítica de Carl Gustav Jung. Antes de Jung, os psicólogos conheciam o inconsciente apenas das repressões e dos esquecimentos. Freud declarou que “o inconsciente é um caos ou uma caldeira cheia de pulsões em ebulição”. Freud tratou o inconsciente como uma espécie de depósito dos nossos desejos reprimidos ligados à sexualidade ou à agressão. Entretanto outras correntes que trabalham com o conceito do inconsciente, como a psicologia cognitiva contesta Freud afirmando que o inconsciente é uma espécie de processador paralelo inerente à mente humana e não um repertório de desejos reprimidos.

Freud falou do pré-consciente e Dessoir do subconsciente. Jung fez uma fusão do pré-consciente e do subconsciente, designando-a de inconsciente pessoal ou individual. O inconsciente pessoal é composto de conteúdos resultantes de experiências individuais. 

Na verdade esses crimes insanos nos remetem a uma reflexão sobre o paradoxo da condição humana:  Nossa dignidade e nossa depravação. Nós somos igualmente capazes do mais sublime gesto de nobreza e da mais vil crueldade. Num momento podemos comportar-nos como Deus, a cuja imagem o homem foi criado, para logo depois agirmos como animais, dos quais deveríamos diferir completamente.

Li detidamente a carta deixada pelo carrasco da escola de Realengo. O conceito que faço dela é, à luz do pensamento kierkegaardiano, o reflexo duma existência de alguém que está na encruzilhada do desespero e da perversidade. Essa angústia é o que se poderia chamar de uma existência poética e trágica em direção ao religioso. Dizer isso já é ir além da psicologia. Essa “existência poética em direção ao religioso” não tem nada a ver com a efusão ou demonstração clara de sentimentos místicos; “ela é, diz Kierkegaard, prodigiosamente dialética e permanece numa confusão dialética impenetrável quanto, a saber, a que ponto ela é consciente de ser crueldade.”

Paul Ricceur, em suas Leituras diz que é desnecessário enfatizar que o mal é o ponto crítico de todo pensamento filosófico: se ele  o compreende, este é o seu maior sucesso. Contudo, o mal compreendido não é mais o mal, ele deixou de ser absurdo e  escandaloso; à margem do direito e da razão. Se não o compreende, então a filosofia não é filosofia.

* Professor e Pesquisador  bibliográfico em Filosofia e Ciências da Religião. E-mail: assisprof@yahoo.com.br

 

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