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Acre na mira da ditadura militar – 2

Nesta segunda reportagem sobre “Acre na mira da ditadura militar”, A GAZETA revela detalhes desta mega-operação e sobre um suposto foco de subversão em Brasiléia, na fronteira com a Bolívia, fomentado por padre.

Canto de pássaro e bala seriam as senhas para sitiar a Capital, Ex-padre Manoel Pacífico da Costa acusado de ter ligações com o Partido Comunista da Bolívia e de “subverter os jovens” de Brasiléia

Um relatório da Polícia Federal, feito em setembro de 1969, afirma que um grupo de supostos esquerdistas estava fazendo treinamento de guerrilha próximo a Rio Branco. A intenção era tomar de assalto os quartéis do Exército e da então Guarda Territorial. Em seguida, a capital acreana seria sitiada por 24 horas para, depois, o grupo seguir para a mata, onde começaria o movimento de guerrilha. A manobra na cidade contaria, segundo o documento, com o apoio de padres, estudantes, cidadãos influentes e intelectuais. Na área rural, a intenção era chegar aos seringais onde, conforme o relato, já havia pessoas prestando assistência e buscando cooptar os seringueiros.

O relatório Subversão no estado do Acre, de nove páginas, foi feito em 9 de setembro de 1969 por um agente da Polícia Federal, provavelmente de outro estado. O documento foi difundido também para o Centro de Informação do Exército (CIE), Marinha (Cenimar) e Aeronáutica (Cisa), além do Serviço Nacional de Informações (SNI). Nele, o serviço secreto parece se debruçar em um grupo de pessoas que supostamente estariam agindo juntas na organização e treinamento de guerrilha no Estado.


No relatório o agente diz que há treinamento de guerrilha na capital acreana, entre outras atividades que ele considera subversivas. “As reuniões e possíveis treinos de guerrilha, são feitos na Colônia Martins, ou seringal dos Martins, que dista da Colônia Penal do estado, aproximadamente, 25 minutos a pé, entre a estrada que vai para a colônia e para Sena Madureira”, relata o agente federal. “Os elementos que participam dos treinamentos vão para aquele local aos sábados e retornam na segunda-feira pela manhã”, acrescenta.

O documento fala sobre a existência de grupos interligados que teriam armamentos armazenados em um casarão abandonado próximo a Xapuri e na fronteira com a Bolívia. Um desses grupos, que teria um de seus integrantes preso na Colônia Penal por subversão, estaria planejando um assalto a uma fazenda perto de Rio Branco, “com a finalidade de levantar fundos para o movimento”, o que acabou não acontecendo. Além disso, conforme o relatório da PF, outras ações iriam acontecer no decorrer do mês. “Em combinação com outros grupos, sem data marcada, mas prevista para este mês (setembro), haverá agitações estudantís simultâneas em Rio Branco, Porto Velho, Cuiabá e Manaus”, narra o agente.

Segundo o relatório, as ações na capital acreana incluiriam a tomada das forças locais e da cidade.  “Também faz parte do plano a tomada da 4ª Companhia de Fronteira, quartel da Guarda Territorial, sendo que, para tanto, empregarão gás paralisante, culminando com a tomada da cidade de Rio Branco por 24 horas e logo após recua-riam para a mata, onde será iniciado o movimento da guerrilha”, diz o relatório da Polícia Federal, sem citar quem foi a fonte ou como conseguiu as informações. “A senha para a operação será o recebimento de uma bala com ponta vermelha, que significa “tudo pronto para a operação” e a senha para contatos será “pássaro marrom cantando”, observa o “araponga” da PF. 


Igreja de Brasiléia seria um foco de “subversão”, fomentado por um padre e “barbudos estranhos”

Subversão
O relatório diz ainda que um dos integrantes dos grupos tinha ligações com membros do Partido Comunista da Bolívia, que estaria na cidade de Cobija, e que teria contatos com um padre de Brasiléia. O religioso é acusado no documento de estar tentando subverter a os jovens locais. O relatório fala na existências de fonias clandestinas na região e descreve que na cidade brasileira apenas grandes aparelhos de rádios potentes conseguem captar emissoras nacionais. Por isso, as pessoas ouviam programas de Moscou, Pequim e Havana, em língua portuguesa.

A preocupação do agente era também com a chegada de estranhos em Brasiléia, conforme os relatos. “Pouco antes das investigações realizadas, um casal (uma moça e um indivíduo barbudo), andou percorrendo os seringais pregando a subversão entre os seringueiros”, relata o policial, ressaltando que, “após a saída do referido casal, chegou àquela região um elemento barbudo, dando assistência dentária gratuita aos seringueiros e propondo que com o novo regime que estava para vir eles não mais passariam privações”.

Integrantes
O agente também faz uma avaliação sobre a situação de Rio Branco e relaciona vários nomes de pessoas consideradas subversivas. Os nomes são tarjados, mas a relação abrange professores, estudantes, membros do Grupo de Evangelização Social e Cultural do Acre (GESCA) incluindo o então bispo local, um ex-deputado, um sociólogo que estaria preso “pela 8ª Auditoria Militar”, o então diretor do Clube Juventus, um servidor do IBGE que estaria preso por subversão, um ex-soldado da 4ª Companhia, um ex-governador “atualmente preso no Rio de Janeiro por subversão” e uma ex-secretária de Educação do Estado.   

População
Apesar do que havia relatado, ao final do relatório o agente federal conclui que a população da capital não se preocupa com a política, mas sim com o desenvolvimento da região e que a classe estudantil era “ordeira e despreocupada”. Mas ele advertiu que o problema estava no interior. “Os elementos subversivos só poderão encontrar apoio no interior, principalmente nos seringais, onde a maioria se compõe de pessoas analfabetas e de fácil manejo por parte de quem oferecer ajuda, por exemplo, medicamentos, e ainda mais por serem privados de seus direitos pelos seringalistas”, observou o policial, acrescentando: “Vivem (os seringueiros) eternamente revoltados, visto de trabalham anos e anos, nunca tendo nenhum saldo a receber, mesmo quando precisam urgentemente de medicamentos não são atendidos”.


Começo dos anos de chumbo
Com a doença do presidente Artur da Costa e Silva, que o afastou do cargo, o Congresso elegeu o general Emílio Garrastazu Médici para o posto. Mas para que isso acontecesse o governo teve que convocar deputados e senadores, já que em 13 de dezembro de 1968 fechou o Congresso pelo Ato Institucional n 5. Até a eleição de Médici, que não teve nenhum voto oposicionista no colégio eleitoral, o país foi governado pelos três ministros militares: Augusto Rademaker (Marinha), Aurélio de Lira Tavares (Exército) e Márcio de Souza Melo (Aeronáutica).

Com a eleição de Médici, começava no Brasil um dos mais duros regimes da história do país. Coube a ele interligar todos os órgãos de inteligência do governo ao Serviço Nacional de Informações (SNI), que havia sido criado pelo regime militar. É atribuído a ele o período de maior violência na repressão a oposição, quando começaram a aparecer os casos de torturas em várias corporações militares e civís, como o Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Foi no governo Médici que os brasileiros passaram a conhecer o Plano de Integração Nacional (PIN), que previa uma série de obras ligando todo o país, como a Transamazônica, iniciada ainda em 1969. 

Enquanto o governo realizava grandes investimentos pelo interior do Brasil e tentava colonizar a Amazônia, em algumas das grandes cidades brasileiras pipocavam as guerrilhas urbanas. Os grupos, neste mesmo ano, sequestraram três embaixadores estrangeiros: Charles Elbrick, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, da Alemanha, e Giovanni Enrico Bucher, da Suíça. Todos os guerrilheiros que participaram da ação foram banidos para o México. No Araguaia, o Exército combatia a guerrilha rural, que durou até 1972 e fez mais de 50 vítimas.

Acre
Entre os integrantes da guerrilha estava o médico Dower Morais Cavalcante, que ficou conhecido dos acreanos quando trabalhou na Secretaria de Saúde do estado no governo de Nabor Júnior. Ele é citado algumas vezes no relatório secreto da “Operação Papagaio”, realizada no Araguaia, como no dia em que foi detido e interrogado, em 5 de junho de 1972.

“O preso informou que, embora sofrendo privações, os subversivos não desejam abandonar a área”, ressalta o documento. Dower, que na guerrilha adotava o nome de Domingos, foi torturado ao lado do ex-deputado José Genoíno, hoje assessor especial do ministro da Defesa, Nelson Jobim. Também trabalhou no Ceará  e em Brasília, no Ministério da Saúde. Morreu de infarto em 1992. 

Em 2007 o Conselho das Secretarias e Secretários Municipais de Saúde de Fortaleza fez homenagem ao guerrilheiro, que virou médico sanitarista, criando a Medalha Dower Cavalcante, oferecida para pessoas que se destacam na área de saúde. 


Ex-padre Manoel Pacífico da Costa acusado de ter ligações com o Partido Comunista da Bolívia e de “subverter os jovens” de Brasiléia

Padre “subversivo” e “barbudos estranhos”
“Não tenho nada a esconder nem do que me envergonhar ou me arrepender. Os tempos são outros, mas continuo com as mesmas convicções”. Esta declaração de Manoel Pacífico da Costa dada ontem em entrevista À GAZETA atesta que no documento Subversão no estado do Acre, produzido em 1969, o agente da Polícia Federal acertou em tudo. Ou quase tudo.

No capítulo que trata sobre um suposto “foco de subversão”, fomentado por um “padre de Brasiléia” com ligações com membros do Partido Comunista da Bolívia, sediados em Cobija, o padre em questão era ele mesmo, padre Manoel Pacífico da Costa, acusado no documento de “subverter os jovens locais”.

Acreano de Rio Branco, tendo cursado o ensino secundário em Cochabamba, na Bolívia, Filosofia e Teologia em Roma, padre Manoel Pacífico ou padre Pacífico, como era mais conhecido, foi mandado, em 1969, pelo então bispo da Prelazia do Acre e Purus, dom Giocondo Maria Grotti, para auxiliar o padre Expedito Malveira de Castro na paróquia de Brasiléia.

Jovem ainda, com ligações com várias organizações clandestinas do Brasil e da Bolívia, tida na época como um dos focos da subversão na América Latina devido à passagem do líder guerrilheiro Che Guevara, padre Pacífico concentrou sua atividade pastoral e política na formação dos chamados “grupos de jovens”. Daí a acusação de “estar tentando subverter os jovens” da pequena Brasiléia.

A preocupação dos agentes ou “arapongas” dos serviços de informação com a chegada de “estranhos” em Brasiléia também procede. Um desses estranhos, um rapaz “barbudo” de 19 anos era um noviço da Ordem dos Servos de Maria, o qual, após ter participado do movimento estudantil em São Paulo, refugiou-se no Acre. Com receio de que fosse preso em Rio Branco, seus superiores o mandaram para fazer companhia aos padres Pacífico e Expedito em Brasiléia. Surgindo qualquer emergência, os superiores o avisariam pela “fonia” (outra preocupação dos serviços de inteligência). Ele atravessaria de canoa ou “catraia” o Rio Acre e se refugiaria em Cobija, na Bolívia.

Anos mais tarde, na década de oitenta, desvencilhando-se da canga do celibato, padre Manoel Pacífico da Costa deixou o sacerdócio. Casou com uma italiana. Filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB), pelo qual, elegeu-se deputado estadual. Viveu alguns anos em Curitiba e voltou para Rio Branco, onde atualmente dirige o Instituto Ecumênico Fé e Política.    

Atualmente, com 66 anos, diz que continua com as mesmas convicções religiosas e políticas e não se arrepende de nada do que fez no passado. Ao contrário, acha necessário que esses documentos secretos do período da ditadura militar venham a público para “quebrar muitos tabus”.

Já no capítulo do documento Subversão no estado do Acre, que trata sobre a mega-operação de guerrilheiros que atacariam quartéis do Exército e da Guarda Territorial e sitiariam a Capital do estado, Rio Branco, os detalhes são mais nebulosos.

O que se sabe é que os supostos guerrilheiros pertenciam a um núcleo ou célula das Ligas Camponesas, organização fundada no Nordeste por Francisco Julião. Dela participavam os irmãos Francisco e João Borborema, Estanislau Siqueira, entre outros, que contavam com apoio de religiosos, estudantes, intelectuais e “cidadãos influentes” da sociedade local. Estes, provavelmente, seriam alguns dirigentes do antigo MDB.

Inspirados nas táticas de guerrilha de Fidel Castro e Che Guevara, tendo um dos seus membros, Francisco Borborema, sido treinado em Cuba, o agente da Polícia Federal acertou ao relatar que o objetivo maior do grupo era também instalar focos de guerrilha nos seringais do Acre. O ambiente era propício, pois como bem observou, os seringueiros “vivem eternamente revoltados” pela exploração dos patrões seringalistas.

Para tanto, precisariam de armas e o objetivo seria sitiar a cidade e assaltar os quartéis do 4º Batalhão de Fronteira e da Polícia Militar. O plano era perfeito. As senhas da “bala com a ponta pintada de vermelho” e o canto do “pássaro marrom”, um curió, muito interessantes. O “araponga” da PF só superestimou a capacidade de fogo dos guerrilheiros.

O próprio João Borborema contava que, na noite em que foram cercados, mal tiveram tempo de fugir, pulando a janela do “aparelho” em que se reuniam na Colônia Martins, hoje Estrada Dias Martins, para se esconder em uma capoeira. Dias depois, fugiram para Brasiléia e depois Cobija, na Bolívia, em um jipe cedido por um dos tais “cidadãos influentes” do ex-MDB. 

Dos integrantes do grupo que se conhece, Estanislau Siqueira, codinome O Velho, morreu de velhice mesmo. João Borborema militou no PMDB e também morreu há dois anos. Seu irmão Francisco teria saído do país e voltado para Cuba, onde é médico.

 

A Gazeta do Acre: