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Acre na mira da ditadura militar – 3

Guerrilha, drogas e tráfico de mulheres. Em 10 de agosto de 1966, essas foram as principais informações obtidas pelo serviço secreto do regime militar, sobre acontecimentos no Acre. O informe 273, do Serviço de Informação da Aeronáutica (Sisa), também mostrava  forte suspeita da presença guerrilheira do lado da Bolívia envolvendo mulheres que estariam sendo utilizadas por subversivos.

Cidade boliviana de Cobija, na divisa com o Acre, apontada como foco de supostos guerrilheiros e de traficantes
O documento da Aeronáutica trata de informações recebidas sobre o que estaria acontecendo no Acre naquele período. Pouco traz de questões políticas. A principal preocupação é com o lado boliviano por causa da guerrilha e a possibilidade dela se estender ao Brasil, pelo Acre. Relata, por exemplo, que na cidade Cobija, na fronteira com o Acre, havia grande movimentação de militares, além de constantes apreensões de armas, principalmente metralhadoras, “parecendo que a organização de guerrilhas, naquela área, está em franco desenvolvimento”.

Em outro ponto afirma: “Existe um grupo de clandestinos que está plotando, em mapas, todos os elementos descontentes do lado brasileiro, bem como os elementos perigosos e, consta, que este serviço é para preparar elementos para futura guerrilha”. Afirma, porém, que esses elementos não haviam sido identificados.

No informe intitulado Atividades suspeitas (Acre) e diversos, há relatos de várias situações ocorridas na época, como o aparecimento de um estranho avião que rondou a região por cinco vezes em um mês, sem que se soubesse sua origem. O que se sabia era que ele havia feito a rota entre os municípios de Assis Brasil (então vila), Brasiléia, a vila e hoje município de Plácido de Castro, e Porto Velho (RO).

 Há também relato sobre um comunista boliviano que estaria envolvido com tráfico de drogas e que seria o “homem que faz os contatos com os subversivos do Acre e da Bolívia e movimenta grandes quantidades de dólares”. O documento diz que esse homem contrabandeava para o Brasil cocaína e uma substância de origem asiática que era “altamente afrodisíaca para mulheres” já tendo “criado problemas nas famílias brasileiras”.


O relatório secreto revela pouco da vida política do estado, a não ser sobre o governador da época, classificado pelo informante do serviço de informações como uma pessoa que não estava se comportando de acordo com as responsabilidades do cargo. “Passa as noites no jogo e, ainda, tem tido problemas com as famílias locais, em virtude de seu mau comportamento moral”, relata o documento acrescentando constar “que o Banco do Acre está com um rombo de 1 bilhão”, a que “mais detalhes poderão ser obtidos com o Bispo da cidade de Rio Branco”. Em outro ponto fala sobre a existência de um professor que estaria difundindo o comunismo no Estado.

O documento repassado para o Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), com difusão anterior do Serviço Nacional de Informação (SNI), indica ainda que no município amazonense de  Boca do Acre, na divisa com o Acre, havia pessoas suspeitas de serem comunistas e classificadas também como “perigosas”. Cita ainda um boliviano que estaria montando frigoríficos no Brasil e que alguns deles, estariam servindo de quartéis para grupos de guerrilheiros.

Na época, o informante detectou o que considerava um dos grandes problemas da região de fronteira, que era o tráfico de mulheres. O que seria realizado em grande escala da Bolívia para o Brasil, pelos municípios acreanos de Brasiléia e Rio Branco, as cidades rondonienses de Porto Velho e Guajará-mirim, para Cuiabá, São Paulo e Rio de Janeiro. O documento diz que em Guajará-mirim “existem elementos de contato que controlam, tendo-se a impressão que essas mulheres, também, fazem o serviço de “pombo-correio”, trazendo mate-rial de contrabando ou subversivo. Após curta permanência no Brasil elas voltam a La Paz”, capital da Bolívia.

Pelos relatos, já em 1966 o Acre era usado como rota do tráfico de drogas que saíam por via aérea em pequenos volumes até Porto Velho, levados muitas vezes por mulheres. “No dia 1º de julho, no avião da Vasp, que saiu de RIO BRANCO para CUIABÁ, viajaram 4 mulheres da rede de tráfico suspeito”, detalha o documento. Diz ainda que no mesmo vôo havia um boliviano que tinha São Paulo como destino final, mas que havia desaparecido na escala em Porto Velho, capital rondoniense. “Não é a primeira vez que passageiros de aeronaves somem em Porto Velho”, observa o relatório.

O começo
 Em 1966 o Brasil ainda estava se acostumando com o golpe ocorrido dois anos antes, quando os militares tomaram o poder do presidente João Goulart. O marechal do Exército Humberto Castelo Banco assumiu a presidência do país. O Brasil vivia momentos de tensão, com cada ato institucional que o governo decretava com novas levas de cassações de políticos e profissionais que se voltavam contra o regime.

Um desses atos criou a eleição indireta para governadores, sendo que todos eles eram da Arena, o partido da ditadura. Também foi em 1966 o primeiro pleito do regime militar, que elegeu 409 deputados federais, sendo 277 arenistas e 132 do MDB, a legenda da oposição.

 Em 1966, o marechal Artur da Costa e Silva foi eleito, pelo Congresso, para substituir Catello Branco. Em seu governo, em 1968, foi instituído o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que resultou no fechamento do Congresso Nacional, cassação de políticos e dura repressão aos que se insurgiam contra o regime militar.

Sem deixar saudades
Na sortida estante de documentos produzidos pelos serviços da ditadura militar sobre o Acre, este de 10 de agosto de 1966 da lavra do Serviço de Informação da Aeronáutica (Sisa) chama atenção pelo tópico sobre o mau comportamento do governador da época.

Como se leu, o governador “passa a noite no jogo e ainda tem tido problemas com as famílias locais em virtude de seu mau comportamento moral”.

Embora o nome esteja coberto por uma tarja, não poderia ser outro. Quem ocupava o cargo na época era o capitão Edgar Cerqueira que, praticamente, se impôs como interventor do regime militar no Acre em um lance picaresco: invadiu a Assembléia Legislativa e obrigou os deputados a aprovar seu nome, com a omissão e a conivência de alguns parlamentares. Um episódio degradante que até hoje mexe com os brios de alguns políticos da época.

O que também o documento não revela é que esse mesmo capitão, depois elevado à patente de major, que comandava o 4º Batalhão de Fronteira, só foi nomeado porque o Acre é longe. O militar indicado pelo regime, um certo coronel Alípio, não chegava nunca ao Estado. Há versões de que o coronel teria sido retido, propositadamente, no caminho. Um capítulo obscuro da história da ditadura militar que valeria a pena ser contado pelas suas diatribes.

Com fama de truculento, para a sorte dos acrea-nos o capitão ficou apenas dois anos no cargo e foi embora, sem deixar saudades e o endereço. Sequer mereceu o nome de uma ruela no Acre.
No mais, o documento em questão já revelava na época a preocupação do regime militar com as fronteiras vulneráveis da Amazônia. Tanto com relação ao tráfico de drogas e, principalmente, com o movimento de guerrilha na Bolívia. Afinal, são mais de 2 mil quilômetros de fronteiras desguarnecidas com a Bolívia e o Peru.

Situação, aliás, que não mudou quase nada até hoje, onde se trava uma verdadeira “guerra suja” com envolvimento do narcotráfico, a guerrilha decadente do Sendero Luminoso e um pouco mais distante das Farcs, na Colômbia. No meio do fogo cruzado, as populações nativas, sobretudo, índios e seringueiros.

Como se observa pelas anotações dos “arapongas”, era mais do que preocupação. Era uma paranóia devido à presença de Che Guevara nos altiplanos bolivianos e, pelo que leu em reportagem anterior, as suspeitas de que ele teria feito incursões também na Amazônia boli-viana, vindo a se reabastecer no Acre.

Por conta disso, não admira que o agente do Sisa tenha produzido tantos relatos sobre a intensa movimentação de supostos guerrilheiros e traficantes na divisa do Acre com a Bolívia, tendo como ponto de partida a cidade de Cobija, capital do Departamento de Pando, separada apenas pelo Rio Acre da cidade de Brasiléia.

Neste mundo, vasto mundo da fronteira, com efeito, tudo poderia acontecer. Mulheres sendo usadas como “mulas” para fazer o transporte da cocaína. O que acontece até hoje. Passageiros que sumiam no trajeto do Acre para estados do Centro-Oeste e Sul do país. Ou até mesmo um boliviano que estaria montando frigoríficos no Brasil para servir de quartéis a grupos de supostos guerrilheiros.

 

 

A Gazeta do Acre: