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Meditações no Dia dos Mortos

Entabulo estas meditações no dia em que o mundo cristão mais uma vez celebra seus mortos. De maneira especial a maioria interrompe suas “ocupações” e preocupações cotidianas para elevar a Deus o pensamento e lembrar, pelo menos, por um dia entes queridos, sejam amigos do peito, sejam familiares, que já não mais comungam desta vida efêmera, pois que vivem, hoje, no mundo ulterior. O certo é que estejam onde estiverem com certeza estão bem melhor do que nós que continuamos a caminhada terrena. Afinal, por mais otimistas que sejamos o quadro que se configura no mundo fenomenal, é dos piores. O que se vê, por aqui, são homens com fome de sangue, quando deveriam ter fome de justiça. O que se vê são os conflitos, guerras que surgem a partir duma simples relação conjugal, entre quatro paredes e, se estendem às nações afora.

Meditação no dia dos mortos nos constrange a um exame de consciência, honesto e sincero, sobre a morte e sobre a vida. Sobre a morte porque é a coisa mais certa no homem; é radical, é implacável; pode está há anos, mas poder está ali bem perto de cada um de nós. Quem sabe? A filosofia e a teologia nos ensinam que não devemos temer a morte, pois põe fim aos sofrimentos terrenos.  Também, a morte de outrem, principalmente se for uma morte súbita, inesperada, nos remete a um anelo ardente e veraz de conhecer nossos próprios erros e corrigi-los. De colocar em prática o altruís-tico propósito de participar mais e mais das grandezas morais que emanam de Deus e utilizar esses valores espirituais em promover a felicidade do próximo.

Diante dessa realidade radical, a morte, urge que pensemos sobre a vida; por outro lado não podemos pensar na vida, sem que pensemos no homem, utilizando aquela velha máxima: Quem sou eu? Quem é você? Gosto do conceito, sobre o homem, de Tristão de Ataíde: “O homem é um ser radicalmente corrompido, governado pela concupiscência, desejos e/ou apetites da carne”.
Sendo assim, somente a Providência Divina pode arrancar o homem dessa miserável condição humana do domínio invencível da vaidade que tudo corrompe, reduzindo tudo a um irremediável domínio das paixões viciosas, pois o perfil do homem atual é governado pela concupiscência do espírito.  

Eis aqui, pois, o paradoxo da nossa condição humana: nossa dignidade e nossa depravação. Nós somos igualmente capazes do mais sublime gesto de nobreza e da mais vil crueldade. Num momento podemos comportar-nos como Deus, a cuja imagem o homem foi criado, para logo depois agirmos como animais, dos quais deveríamos diferir completamente.

Nós os seres humanos inventamos os hospitais para cuidar dos doentes, universidades onde se cultiva a sabedoria, assembléias e congressos para governo justo dos povos, e igrejas onde adorar a Deus. Mas somos nós também que inventamos as câmaras de tortura, os campos de concentração e os arsenais beligerantes. Assim, ora promovemos à vida, ora causamos a morte. Estranho e incrível paradoxo! Nobre e ignóbil, racional e irracional, moral e imoral, divino e animal. Eu sou um mistério para mim mesmo, disse  certo pensador contemporâneo, um incômodo enigma… Sou essa estranha dualidade de pó e glória, vida e morte.

O Senhor Jesus Cristo, certa vez, relatam os evangelhos, convocando a multidão, disse-lhes: “Escutai-me todos e entendei. Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do homem é o que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem aos maus desígnios, prostituição, furtos, homicídios, adultérios, avareza, malícias, dolo, lascívia, inveja, blasfêmia, soberba, loucura. Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem”.

John Stott, teólogo e pensador inglês, diz que no texto, Jesus ensinou que a maldade do homem é de origem interna sua fonte se encontra não em um ambiente ruim, nem em uma educação falha, mas, sim em nosso “coração”, nossa natureza herdada e pervertida. Quase se poderia dizer que Jesus nos introduziu ao freudianismo antes mesmo de Freud. Pelo menos aquilo que ele chama de “coração” é, em termos aproximados, equivalente ao que Freud chama de “inconsciente”.
A teologia cristã tem uma resposta para esse enigma. A alma ou a forma como queria Aristóteles, é a dimensão mais espiritual da psique. É o órgão da percepção de Deus. E a porta da alma é o conhecimento de si mesmo. Todo conhecimento de si mesmo conduz ao desapego do ego. O emblemático (metafísico) é o que chega ao conhecimento de que a criatura é nada. Então, num ato de humildade, enche seu “nada” com o “tudo” de Deus!

Ademais, urge que nos desliguemos do materialismo exagerado produto de sistemas empíricos que consideram real só aquilo que é mensurável; que só acreditam no que tocam com os sentidos e com “os instrumentos científicos”. Carecemos, é o que eu penso nestas meditações no dia dos mortos, a partir duma perspectiva espiritual, vislumbrar um novo começo depois da morte terrena. “Buscar a existência de esferas onde não prevalece o tempo, conforme conhecemos” (Agostinho).
Aos que não acreditam nessa outra aura de vida, faço minha as palavras de Cícero: “E se erro ao pensar que as almas dos homens são imortais, erro voluntariamente, e não quero que me tirem desse erro enquanto vivo, porque nele está meu prazer; e se depois de morto (como crêem certos filósofos de pouco renome) não existir nada, não temo que os filósofos mortos ponham-se a rir de meu erro”.

 

* Francisco Assis dos Santos é pesquisador bíbliográfico em humanidades. E-mail: Sinalacre@uol.com.br

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