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“O reino dos meios”

O Congresso Nacional atual, além da desfaçatez da maioria que lá milita, pois segundo Jarbas Passarinho, furta-se com tal desenvoltura que comparado com o passado, firma-se a ideia de que a moral ali está em declínio, conseguiu atingir índices vexatórios de descréditos junto à população brasileira. Tal conceito não é improcedente, pois o preconceito  generalizado na atualidade, em  relação à atividade política, é vista como prática pouco favorável à conduta regida por princípios éticos. Tal  aviltamento é reforçado por aquela concepção, atribuída a Nicolau Maquiavel, de que ética e política estão em campos antagônicos.  

Assim, estamos perplexos com o surgimento de novos e terríveis fatos, crimes contra o erário público que se repete, quase que diariamente, a cada minuto e nos chocam e nos levam as raias de uma psicopatia. As perspectivas são sombrias, é inegável.

O que fazer então para espantar de uma vez por todas os maus presságios (agouros) que circundam o Congresso Nacional; os governos, federal, estadual e municipal, eternamente em crises e, por extensão, os partidos políticos que, em sua maioria, nada mais são do que siglas de aluguel, de algumas figuras (endinheiradas) de mentes espertas. Políticos, renomados,  envolvidos com toda sorte de impro-bidades,  mancomunados com gente muito boa, protegidos pelo privilégio real. Seria demasiado longo, diria Prodhon (Filosofia da Miséria) enumerar todos os tipos de fraude que são cometidos contra o povo. O que fazer?   

A primeira coisa seria galgar ao poder público, somente homens e mulheres que comprovadamente possuam conduta ilibada e estejam dispostos a pagar o alto preço do serviço público sem se deixarem contaminar pelo canto da sereia, que tenham domínio próprio, pois quem não é capaz de governar a si mesmo, no dizer de Gandhi, não será capaz de governar os outros. Contudo, onde encontrá-los? Pois, parece que o  mundo de hoje é o mundo dos velhacos, dos trapaceiros, dos charlatões, infiltrados em todos os segmentos da sociedade. Deste modo, estamos todos privados de fim, de unidade e de verdade. O mundo parece sem valor.  Mundo sem valor e cada vez mais distante dos  princípios e leis da lógica, como arte do pensar, que mostra que a moral visa à edificação de um “reino dos fins”. Mundo em que a vontade legisladora de um “reino dos fins” infelizmente sucumbe diante da amoralidade dos que “edificam” na construção de um “reino dos meios”.

Pondo de lado a minha indignação, própria de cidadão comum, remeto o meu cogito para esse enigma indecifrável para o pensamento: Qual é a origem dessa desonestidade, qual é seu fundamento? E por que o homem frauda o seu semelhante? Alguém pode responder essas questões? Uma coisa é certa, essas práticas nocivas estão inerentemente ligadas nas entranhas do próprio homem.

Talvez, sem escárnio, as confissões de Santo Agostinho (354-430) nos ajudem a entender, sem compreender, os motivos que faz essa gente, tão privilegiada pela vida, fraudar. Quando jovem, diz Agostinho, quis roubar sem ter sido levado pela necessidade, simplesmente por indigência e desgosto do sentimento de justiça, por excesso de iniquidade. Furtei, diz-nos ele, aquilo que eu tinha em abundância e de melhor qualidade. E era não a coisa cobiçada por meu furto,  mas o furto, em si, e o erro que eu queria desfrutar (??). Esse desejo insaciável em desfrutar a incomoda condição de embusteiro, tem sua representação em quatro palavras latinas, definidas pelo próprio Agostinho: imago, o pensamento impuro na imaginação; cogitatio, quando se vai pensando no que é impuro; delactatio, quando nos deleitamos no que ruim e, assentio, o assentimento, ou em outras palavras, consentimento, que no caso significa aptidão para enganar. Juntas, estas palavras significam a comissão da fraude.

É a própria engenharia do mal, diria Fellini, no seu O Casanova, com suas maquinações e perversas tramoias. Assim, de soslaio, parece que essa gente que frauda independente do nível social, está presa a esquemas espúrios; frauda  sem causa, pelo único prazer  de fraudar. Mas essa atitude ilícita, em relação ao nosso próximo, a exemplo do mal moral, é mesmo um mistério, um enigma para o pensamento. Por isso, diria Jankélevitch, somos forçados  a afirmar, por assim dizer, que somos homens e mulheres, de estrutura delituosa por natureza, uma espécie de culpa original. “Todos pecam e estão depostos da Glória de Deus” (Rom. 3.23).

Há quem diga que já foi pior, a estes repondo com uma máxima do século XVIII atribuída ao nobre inglês Percy Blakeney, também conhecido como Pimpinela Escarlate: “Não há no mundo nada tão ruim do que quando todos acham que as coisas não estão tão ruins”.

Portanto, pode-se dizer que toda essa loucura humana, bem parecida com as impressionantes ficções de Hollywood, horripilantes e arrepiantes, para não dizer apavorante, é produto duma nova filosofia de vida em que a verdade e os valores são relativos, dependentes de sua utilidade tanto para os indivíduos como para a sociedade. Por aqui, os fins justificam os meios.

E mais: O sentimento da ausência de valor emergiu, diz Nietzsche, “quando se compreendeu que a existência em seu conjunto não poderia ser interpretada nem pelo conceito de fim, nem pelo de unidade, nem pelo de verdade; a existência deixou de ser verdadeira, é falsa”.

P.S. A direção, o corpo docente e  os acadêmicos em geral da Sinal Faculdade de Teologia e Filosofia lamentam profundamente o passamento súbito do professor Ednaldo Andrade. Com sua morte estão interrompidas ricas aulas do pensamento humano. Descansa em paz amigo!

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