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A solidariedade do inimigo

A-240 1Nenhum relacionamento é tão marcadamente assassino quanto o da aranha com a mosca. Sim. Eu copiei do Juliano, de Gore Vidal. Mas, para ser um pouco menos incisivo, recorro ao romântico Proust e lhes afianço-  minhas senhoras!  –  que é só nos períodos de devastação íntima que se faz a grande arte. A grande arte é infeliz, é atormentada. Considere-se, por exemplo, que ainda não há o manual para a elaboração da boa poesia.

E já o tempo comeu seis anos, sofregamente, depois da outra época. Tudo foi tão rápido que, na minha casa de exceção, tudo continua como d’antes. Muito pouco ou quase nada melhorou. Há instâncias, inclusive, que regrediram, ou pioraram, posto que as levaram à desumanização quase completa. Por isto, é preciso inovar a partir do cerne e da base.
Inova, Ufac!

Então. Se o teu sol não brilha, não queira jogar água na minha tenda, nem na minha fervura. Ninguém deve colocar a culpa do infortúnio naquele que caminha sossegado na vida, ao seu lado, muitas vezes a lhe dar a mão amiga em estreita colaboração.

Meditemos, pois. Aquele a quem nossa mãe deu à luz há apenas poucos meses, nós já o chamamos irmão, e o amamos. Aquele que, diariamente, há trinta e quatro anos, vive debaixo do mesmo teto, oito horas por dia, e até nos finais de semana no regozijo do lazer, pensando acerca dos mesmos problemas, buscando as mesmas soluções, vivendo na defesa de uma causa comum, talvez seja mais que irmão, em vista dos anos e anos de convivência, no trabalho.

Dia desses, então, lancei meus dardos ligeiramente infectados contra as ruínas do edifício das relações humanas da Universidade Federal do Acre. Consegui agradar parte significativa até daqueles que, por pura distração, sequer me cumprimentam. Hoje vou além. A instituição é pública e todos os fatos ali ocorridos deverão ser do domínio público. O povo do exuberante Tucumã e adjacências também paga impostos e nos alimenta a alma nada orgulhosa e o corpo ligeiramente deteriorado. Os que vivem na Custódio pensam que as letras daquele pórtico têm a ver com a Aeronáutica ou com a Polícia Federal.
Não sou candidato a nada e só quero os vencimentos que me cabem. Trato aqui de inveja, maledicência, perseguição, preconceito, babaquice, dentre outros venenos que apodrecem o corpo doído daquela casa de excelência. E os fatos são dignos de registro porque lembram as velhas parábolas em que o irmão rico quer que o irmão pobre se lasque no meio. Lembra ainda as partilhas de bens deixados por pais abastados a filhos gananciosos, gulosos e sem formação humana o suficiente para notar que a miséria do irmão é a sua miséria, assim como a fortuna do irmão é a sua fortuna.

Romântico demais!

Pois bem. O quadro da Ufac é dividido em duas partes. Há os professores e há os técnicos. Os primeiros não se unem e, no mais das vezes, sequer se conhecem ou se falam, em vista das exageradas doses de arrogância e antipatia que lhes nutre o espírito antes tão brando e risonho. Entre eles, a desunião é até pregada, uma vez que uns são sempre superiores aos outros, e vice-versa. Os que têm um grau de estudos mais elevado arrebitam os narizes e passam ao largo. Os que têm cargos de chefia e ganham generosas gratificações olham para os demais com os olhos do lobo que guarda o seu naco de carne entre as patas. Esse dilaceramento é que os tem levado a não tirar proveito de reivindicações coletivas, posto que não há exatamente um coletivo. E todos perdem.

Os outros, os funcionários administrativos, considerados pelos primeiros como a plebe ignara e rude que ali está pra lhes limpar as botas, são bem unidos na defesa dos direitos seus. Marcham de braços dados, teimam com o patrão, se erguem contra o Governo e, assim, paulatinamente, vão abrindo suas veredas com bastante humildade, mas sem perder de vista que, mesmo as viúvas dos que se vão, merecem uma vidinha melhor porque os seus maridos muito se esforçaram.

É assim! Pobre se mete na vida dos outros até para ajudar. Enquanto isto, por trás das cortinas, a nobreza trama até contra os seus pares. São capazes de mandar recados para juízes e tribunais com a finalidade, até, de sacanear uns aos outros. Imagine se for para prejudicar o pobre que na noite escura da caverna estreia uma lanterna novinha em folha… Que se dane!

Os funcionários ganharam uma causa na Justiça e tiveram os seus salários aumentados. Os professores, não. Por isto, agora, a inveja corrói a alma de pessoas que um dia pensei tão justas, em vista da formação e da competência indiscutíveis.

A perseguição é do tamanho de um predador que só se satisfaz ao sabor do sangue. O preconceito, maior ainda, não consegue enxergar que os salários deles são parcos, sim, mas isto não justifica a ira que os tem levado a telefonemas para promotores de Justiça tentando fazer com que a causa ganha seja revertida. Ora, eu torço para que eles ganhem muito melhor. Mas sinto que é necessário que me deixem ganhar um pouquinho mais, afinal de contas, são dezesseis anos sem aumento e a inflação e a prole a crescer… E o leão a rugir!

E a minha visão é a da maioria. É real até sem óculos. A partir de 1978, época em que fui concursado para trabalhar na augusta Casa, observei desde o primeiro dia estar lidando com uma espécie de inimigo oculto que, na surdina, passa-te a mão nas costas, mas te quer ver debaixo dos saltos altos, apanhando e sorrindo como se nada de ruim estivesse a acontecer. É claro que há as honrosas exceções. É claro que da minha parte não há revolta alguma porque vivo da maneira que Deus permite. Bem!

A inovação viria do charco sobre o qual patinamos. Está podre o edifício porque os alicerces foram construídos sobre bases falsas e imorais. Sempre houve uma espécie de litígio surdo e mudo, mas prejudicial. Não sei por quais vias haveremos de crescer, se uma casta de dignitários quer ver a plebe na desgraça.  

Que almas tão pequenas! Eu não ficaria a zombar se a alegria do companheiro estivesse quase a morrer na praia. Aos meus inimigos íntimos, então, que nada de ruim lhes aconteça nesta vida.
Por tudo isto e por muito mais, dedico a todos uma poesia da minha triste lavra chamada Retorno:

Acenderam as luzes de um dia de horas brandas.

Jorram agora vertentes de sol pela grama ainda úmida do jardim.

É que tenho observado as cores do dia apenas no começo e no fim.

Sem perceber que tudo é apenas uma sucessão de matizes e pigmentos.

Que fazem a diferença a cada instante que passa envolto na poeira do tempo.

Agora, o céu parece uma sopa, borbulhando, se mexendo.

São velhas coisas e pedaços de desespero flutuante.

Almas entregues à esteira rolante da eternidade.

Um rosto de papelão amarrotado e aborrecido.

Parece segurar as palavras na mão, amassá-las e jogá-las num cesto.

O abalo que se abateu sobre alma e matéria.

Agora do abismo se regenera a fonte de água cristalina.

É hora de acariciar de novo o tempo e o vento que se fazem.

Uma vez mais brilhantes, mais acesos, mais intensos, mais resplandecentes.

Do jeito que a natureza fez só para o nosso eterno contentamento.

É tempo de humanizar. É hora de dar as mãos sem a intenção de atirar o irmão na lama podre. É preciso convergir. A luta não é de uma parte dos servidores da Casa, mas de todos, independentemente da formação intelectual ou do tecido das calças. Compartilhemos o caos e saiamos das cinzas para uma nova época. É tempo de inovar.
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1.    A primeira versão desta crônica foi publicada no jornal A Gazeta, em 03 de fevereiro de 2006, quando as coisas não eram piores.

* José Claudio Mota Porfiro é escritor.

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