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Vida nova na Corte

A sinuosidade do rio, agora, faz com que as distâncias amazônicas pareçam eternas. É lancinante a inalterabilidade de tudo. O tempo, deveras vagaroso, é como se descesse ou subisse por uma escada de linha zero. Até no voo dos pássaros há algo de mais lento. Em nada há pressa. A vida segue devagar e bem fria, principalmente, de madrugada ou de manhã cedo, entre uma friagem e outra.
AC1145
Logo depois da Boca do Lago, de baixada, o Rio Acre faz três sacados como se fossem ésses bem fechados um sobre o outro. No inverno, se duas embarcações passarem simultaneamente pelas curvas fechadas, dá para os viajantes de uma acenar para os da outra. É a natureza a ditar suas regras mais uma vez. A viagem é feita, sim, mas a estrada de água faz a sua cobrança ao exigir que o viajante pague a penitência que é percorrer todas as mil e uma curvas e voltas que nos levam a Rio Branco.

O olho espichado pelo longo estirão à frente parece cansar de tanta esperança que carrega a sua luz já enfadada. A cada hora, a paisagem constante é mudada, na maior tranquilidade, por uma pequena barraca de ribeirinho ou por um barracão de seringal à beira do rio. Afora isto, de vez em quando, desvia-nos a vista um jacaré ou um tracajá que mergulham mansamente, como se não os perturbássemos. É verão e a água corre mansa. Há espumas flutuantes, como os versos do poeta. É como se fosse um tapete lisinho que é cortado abruptamente pela força do pequeno barco. A monotonia é grande demais e a vontade de me tornar funcionário público é maior ainda. Enfim, como se vive sempre de esperar o dia seguinte, esperemos apegados à confiança em Deus.

Eu e o Ovídio fizemos um quebra jejum à base de pão de milho e carne moída. Depois das despedidas de uma ruma de gente  –  meus queridos amigos, com os quais convivi quase ano e meio  –  deixamos o Seringal Boca do Lago às cinco da manhã de um dos últimos dias de junho de 1940, debaixo de uma névoa úmida e fria aqui chamada cerração.  

Tinge-me a mente alguns pensamentos longínquos demais. Ah, a mulher amada! E os filhos queridos! Lembro os bons tempos do namoro em Belém que agora estarão de volta, no Acre. Assim espero. As saudades da esposa são indizíveis, mas podem ser escritas. O companheiro de viagem não diz uma palavra. Não vemos um barco maior que vá ou que venha. Poucas vezes, alguém nos acena de uma ou outra canoa movida a remo ou a varejão. Ele passa horas e horas com os olhos fitos no rio à frente. Com um lápis rústico, faço rabiscos num papel de embrulho, apesar da trepidação do motor atrás de mim. À moda dos poetas da Semana de Arte Moderna de 1922, elaboro uma poesia romântica  –  o que é controverso  –  inspirada numas poucas que li de Oswald e Mário de Andrade, paulistas. Vivo épocas de devastação íntima e é só assim que se faz a boa poesia. É muito bonita, pelo menos para mim que não sou crítico caótico de mim mesmo. Chama-se Canção em Retalhos:

    Esta é a minha poesia
    Para a musa que dormia
    Dependurada nos sonhos meus…
    E vieram lágrimas
    Que pareciam pular
    De grandes olhos amendoados,
    Meigos, sublimes, belíssimos,
    Quase infantis.
    E, do caos amainado,
    Vi olhos ainda mais doces
    Como dantes jamais houvera visto.
    Mas, de repente,
    Bem mais que de repente,
    O pranto se fez riso
    E da dor nasceu o aconchego,
    E beijos e abraços apertados,
    Suspiros ofegantes.
    Floresce, então, hoje,
    A imensa vontade de te amar demais,
    Como nós temos nos amado,
    Todos os dias das nossas felizes vidas.  

Estamos levando conosco duas latas de banha, daquelas de dois quilos cada, uma cheia de farofa de jabá e a outra com farofa de pirarucu salgado. No meio do barco, próximo ao motor de centro, está acomodada a malota dos livros sobre um pequeno estrado e coberta com uma lona verde. Sobre esta segue um saco de encauchado, impermeável em seringa, com as poucas roupas e os sapatos. É mínima a bagagem para um sujeito como eu, por aqui, sem eira nem beira, sem a rama da figueira. Levo ainda uma ordem bancária de cento e noventa mil réis e mais uns setenta e cinco mil em dinheiro em espécie. Esta é a minha pequena fortuna amealhada sem muito esforço e com a qual deverei comprar uma boa casa na capital do Território Federal do Acre, onde terei um salário de vinte e cinco mil réis e mais umas ajudas de custo e uma quantia que é paga pelo Governo da República aos que se aventuram trabalhar e defender os interesses do Brasil por estas bandas. Enfim, dá para viver folgadamente, como sempre, na graça de Deus.

À uma da tarde, não paramos, mas almoçamos e tomamos água do rio. Às seis e pouco, conseguimos chegar ao Seringal São Gabriel, onde dormimos até as cinco da matina. Exatamente um dia depois, chegamos ao Seringal Itu. No outro, às quatro, já estamos em Rio Branco.

As mudanças nunca ocorrem sem inconvenientes, até mesmo do pior para o melhor. E amanhã não serei o que fui, nem o que sou. Afinal, só é possível transformar-se na medida em que já se é. O senhor Shaw escreve que o progresso é impossível sem mudança. Aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada. Por essas e por outras, vamos embora!

É quarta-feira, fins de junho. Rio Branco, a Capital, é muito aconchegante, pelo menos para quem está tão acostumado ao silêncio do seringal. Estamos instalados numa pequena hospedaria  –  Nossa Senhora do Carmo  –  à beira do rio, bem próxima da Igreja de São Sebastião e em frente ao Mercado Municipal, construções em alvenaria rústica, mas com acabamento até certo ponto refinado. Da janela do segundo andar, vejo a rua e vejo o rio.

Ah, o Rio Acre! Este que nas suas águas vai levando, mansamente, a história que é construída a cada dia por este povo antes sonhador e hoje já vitorioso. É este afluente do Purus que presenciou e é testemunha viva do quanto sofreram os acreanos para fazer valer a sua autonomia e a sua na-cionalidade brasileira. Algumas lágrimas querem pular dos olhos, à força, só de pensar no quanto os irmãos nordestinos, principalmente os cearenses, sofreram para fazer desta uma terra benfazeja. Lembro com pesar a aventura que foi o episódio da grossa corrente que, antes de ser serrada para dar passagem ao navio, viu dezenas de bravos serem despachados rio abaixo pelos tiros dos bolivianos. Oh, céus! A arrogância dos inimigos falou muito mais alto e os acreanos foram quase obrigados a resolver tudo à bala. Vieram do Nordeste do Brasil tangidos pela seca e já estavam acostumados a entreveros e desavenças resolvidos na força bruta. Como césares pobres mas decentes, vieram, viram e venceram.

***
Sexta-feira, sol a pino. A aurora chegara gelada. O Palácio do Governo, em estilo neo-clássico, é suntuoso por dentro e por fora. Do lado externo, ele enfeita a pequena cidade. Andando pelo interior do prédio, é como se estivesse numa grande capital.

O Governador do Território do Acre, Dr. Epaminondas Martins, recebeu-me às onze da manhã. Tudo é mais pompa que circunstância. Com ele, há um séquito, talvez de nobres fidalgos. Lá estão Océlio de Medeiros, Godofredo Maciel, Abel Pinheiro e Garibaldi Brasil, este último, uma espécie de chefe do gabinete civil, conhecido meu desde o Pará. Como pede o protocolo, Sua Excelência está vestido de modo sóbrio, mas elegante. É médico e homem simples, mas refinado. Fala pausada, mansamente e em tonalidade muito baixa. Eu, de minha parte, mandei engomar e estou trajando o terno bege talvez fora de moda que trouxe ainda de Belém.

– Bom dia, senhores. Eu tenho a honra de vos apresentar o meu particular amigo, o doutor Melchíades Ferreira de Lages, Exator da Fazenda Federal no Acre, recentemente nomeado, meu contemporâneo de faculdade em Belém do Pará. – Foram estas as palavras que abriram a solenidade, proferidas pelo Doutor Garibaldi Carneiro Brasil.

Fui cumprimentado por todos com apertos de mão e tapas nas costas. Era como se já estivesse em casa a partir do meu primeiro dia em Palácio.

Em seguida, agradeci a recepção e disse estar pronto para tomar conta dos interesses nacionais em terras do Acre. Para finalizar o ato solene, o primeiro dentre muitos, o Governador falou da sua gratidão pelo Governo da República ter, finalmente, atendido um pleito de dez anos.     – Agora, os impostos federais serão cobrados com a competência requerida de um agente de tamanha reputação, como o nobre amigo Doutor Melchíades. Teremos, então, como forçar o uso das verbas federais em favor dos acreanos. Dependemos só de saber como pedir. Serão necessários, certamente, projetos bem calculados e justificados.

O almoço lauto é oferecido em Palácio e a cerveja corre solta às cinco da tarde. Garibaldi, agora o meu cicerone em terras acreanas, é um pândego, real-mente. Cada frase sua é seguida de uma gargalhada longa e uma baforada em charuto cubano. É um verdadeiro cavalheiro e um anfitrião de melhor marca. É ele quem anuncia o desenrolar dos acontecimentos a partir das nove da noite como parte, ainda, da minha recepção de homem público federal.

A festa não é em minha homenagem. Coincidentemente, comemora-se o aniversário de um dos figurões da terra, o Dr. Abel Pinheiro, uma espécie de secretário maior, planejador e executor de obras, e quase vice-governador.

De volta à hospedaria, está à minha espera uma caixa com um terno cinza, gravata, camisa e sapatos. É um presente do Governo do Estado.

Às nove, já estou pronto e, junto com o Garibaldi, me dirijo a uma sede social extremamente simpática localizada ali bem pertinho. Já quase à porta, o meu cicerone anuncia:
– Este é o Rio Branco Football Club.

*O www.claudioxapuri.blog.uol. com.br está entre os sete melhores do Brasil via UOL.

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