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A última idade do imprestável

A aposentadoria no Brasil não é apenas o início do fim. Seria romantismo demais. Ficar velho, aqui, é bem mais que isso e a terceira idade feliz na plenitude, como pregam alguns geriatras extremamente otimistas, é pura falácia desses que querem tapar a lua com a peneira, posto que o sol já se escondeu no ocidente da decrepitude desde algum tempo.

A decepção grita a plenos pulmões enfraquecidos dos que realmente trabalham. E não pergunte o que a pátria pode fazer por você, mas o que você pode fazer pela pátria. O John Kennedy plantou a ideia anterior há muito sentida, mas não percebida, principalmente, por boa parte dos oportunistas-  deputados e senadores  –  que se acercam do poder sem as mínimas condições legais e intelectivas para representar o povo que lhes paga salários de fidalgos analfabetos.Além dos altíssimos salários, boa parte dos representantes da plebe ainda se sente no direito de assaltar o erário público.

No capitalismo é assim mesmo: o cidadão em idade produtiva paga impostos escorchantes para alimentar políticos fúteis e imbecilizados pela péssima formação moral e intelectual que herdou de pais também obtusos e ladrões.

Depois de velho, então, o trabalhador cansado vai para uma espécie de masmorra psicológica substancia-da por um ostracismo que o definha e o mata em pouquíssimo tempo. Tiram-lhe o couro a partir das costelas, espremem a última gota de suor e de sangue e, depois, vem a aposentadoria aos setenta anos. E vêm os cortes das vantagens que o pacato contribuinte tinha. O vencimento mensal míngua ou quase deixa de existir. E todo o salário vai para o plano de saúde que cobra mensalidades escandalosas só porque o cidadão morrerá em poucos dias. E vem a conta da drogaria que despacha remédios contra hipertensão, úlcera, osteoporose, hepatite, trombose, diabetes, câncer, dentre outras, contraídas, muito provavelmente, em meio e devido às relações azedas no serviço público.

Aí, ele –  o professor  –  chega ao setor de recursos humanos da secretaria já em fase de extinção, esbaforido, lascado, quase morto e ainda lhe enfiam goela adentro a pecha de inativo. Inativo é o cassete!

– Tu estás aposentado! Estás a um passo da eternidade. Morra!  – É o que pensa e diz o imortal burocrata do alto do magnânimo pedestal dos que jamais envelhecerão.

Alguns poucos vão para as viagens de recreio no litoral. Não têm mais nenhuma graça. São almas andantes como zumbis na areia quente. Aí, o bom velhinho vai à praia, mas não pode pegar sol devido às possibilidades de uma insolação ou recrudescimento do câncer de pele. Não pode caminhar porque as pernas estão em pandarecos. Não lhe é permitido ingerir uma caipirinha porque o fígado virou um saco de excrementos. É-lhe proibido mirar as ancas de uma componente do belo sexo porque a libido se foi e os mais novos pregam um falso moralismo segundo o qual aquele lá é apenas um velho enxerido. Não. Não se pode mais apreciar as coisas mais perfeitas elaboradas a partir da mão de Deus, assim como não se pode pensar numa outra espécie de carne, a picanha, porque a ingestão de gordura está proibida. Não pode olhar para a cerveja porque os carboidratos podres lhe adocicam ainda mais o sangue puro mel. Numa alusão ao poeta, é melhor se entupir de remédio e ficar em casa com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar.

Em síntese, é assim a terceira idade, notadamente, no caso do servidor público que se especializou em vender aulas a baixo custo. Aido infeliz professor que conseguir envelhecer!
Agora mesmo, o Seu Zé das Melancias não mais aguentou. Vendia aulas a bom preço no sistema de ensino médio estadual. Ia ao quadro e escrevia textos dissertativos, de próprio punho e sem tirar ideia alguma de nenhum lugar, só do quengo treinado nas lides enquanto cronista e articulistajornalístico há vinte e porrada de eras. Por três anos intercalados foi eleito professor fora de série e professor nota dezem pesquisas levadas a efeito pela coordenação pedagógica do colégio. Nos últimos três anos, lutou sofregamente para ensinar alguma coisa mínima a alunos que a partir das famí-lias não estão aí para aprender muita coisa. Suou em bicas, dando aulas em pé por três ou mais horas, gesticulando igual macaco, comeu giz por tempos a fio, antes do advento do ar condicionado e do pincel. Executou vários projetos de pesquisa, como um denominado Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê,quando da Bienal do Livro de 2009; como o Salas de leitura, de 2010, como o Projeto Charges e o Projeto Metáforas em Frases de Caminhão, dentre outros. A experiência ainda o leva a sonharcom a fundação de um jornal escolar moderno, inclusive via internet, patrocinado por empresas privadas e que estimule o hábito da leitura de textos leves – previamente revisados – roduzidos pelos próprios alunos e professores. Em síntese, apesar do fugir das eras, ele está vivo, mas não se aguenta em pé. É que umas tais varizes ajudam a fazê-lo pensar sempre o pior: ser demitido por justa causa por não ter mais condições de levar a bom termo os seus afazeres profissionais.

Ademais, os açúcares lhe povoam o sangue, mas a verve continua a mesma, ferina. O problema maior é que, para uma sobrevida mais digna e produtiva, foi aconselhado pelos médicos a praticar uma atividade física pela manhã, e assim é feito, como há muito tempo. Mas à noite, também devido outras tarefas desenvolvidas durante o dia (ao professor é necessário esfalfar-se para viver um pouco melhor), as pernas pesam demais, apesar de os índices glicêmicos estarem mais ou menos normalizados. Pior é que também lhe recomendaram ficar sentado, com as pernas acima do nível dos quadris, a cada quinze minutos de atividade em pé, de modo a facilitar a circulação dos membros inferiores que, numa hipótese mais grave, podem até ser amputados. Grotesco, então, seria observá-lo a dar aulas de pernas para o ar, ou sem as pernas.

Por tudo isto, a produtividade caiu a níveis degradantes e as aulas baixaram para patamares que bem poderiam significar de quinta categoria. O que fazer? Não é conveniente fingir dar aulas em prejuízo dos alunos e do projeto da escola. A continuar assim, a grande saída é que os burocratas o demitam sumariamente por estar, hoje, muito mais atrapalhando que ajudando o desenvolvimento do processo.

Nesta cronicazinhachinfrin também em frangalhos, poucos são os peixes bons a serem vendidos. A maioria está podre, como no relato a seguir. Os mandis estão meio frescos. Os surubins já pegaram pitiú.

Há trinta anos de trabalho, legitimamente reconhecidos pela previdência oficial, mas, aos cinquenta e lá vai pancada, conseguiu fazer subirem os índices glicêmicos e se tornou um diabético infeliz como todos. Foi aí que ele notou que, entre os que labutam pela qualidade de vida dos comedores de giz, há um predador espe-cialista em sangue de aposentados. São aqueles tecnocratas que dizem contar os anos de trabalho dos que querem passar o resto da vidinha parca sem os achaques dos chefetes inexperientes que sempre ditam a última moda de um avanço tecnológico que, simplesmente, não considera a humanidade do homem que tem como princípio e fim a busca da felicidade.

Entre os que vendem aulas, em síntese, ocorre um mal necessário para o bom desempenho da burocracia estatal sem compaixão, dó ou piedade de nenhum ente vivo.
Pior é observar que um professor que de repente se torna burocrata esquece que um dia já foi um agente de humanização e passa a taxar aqueles que estão em sala de aula de incompetentes, embusteiros, mandriões, enrolões, dentre outros adjetivos impublicáveis.

Minha senhora, acredite se quiser. Mas espere até chegar a sua hora infeliz de se deparar com o famigerado contador de tempo de serviço. Mesmo assim, avance. Não morra antes.
Lembro um amigo que foi acometido de uma moléstia denominada Síndrome de Burnot; aquela que faz com que o indivíduo passe a se sentir mal apenas ao ouvir falar do setor onde trabalha, por razões que vão desde a improdutividade do grupo ao desengano por ver que pouca coisa evolui. O diretor do centro o poupou de tanto desassossego e o permitiu tratar-se em casa. Durante dois anos, ele ia ao setor de recursos humanos e lá diziam que no mês vindouro sairia a aposentaria do agora imprestável professor doutor coberto de glórias sem nenhum valor. Sem nenhum enfado, digo-vos que ele morreu para o sistema de ensino, mas reviveu depois que não mais se permitiu o contato com os inconsequentes e desavisados burocratas que nunca sabiam exatamente o tempo exato da sua aposentadoria. Ele está vivo e muito vivo escrevendo um livro de memórias.

Assim como o Seu Zé das Melancias que, depois de escrever teses e tratados acadêmicos não publicados, passou a viver produzindo literatura. Já publicou um livro de crônicas sem a ajuda de nenhuma instituição, tem umaoutra obrapronta esperando financiamento de um Midas qualquer e, agora, está escrevendo o 46º capítulo de um romance amazônico com cheiro de Acre.
Ser funcionário público nesta terra é assim mesmo. A maré está sempre contrária, até na última hora, como aqueles que se envenenaram com o pesticida da malária durante anos e depois morreram à míngua. Bem pior é ver que as leis que regem os novos contratados são muito mais espoliadoras da alma e da matéria de quem vive e viveu combatendo o bom combate, conforme está o Livro de Mateus.

Categories: Cláudio Porfiro
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