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Gente de bem

Dez anos se passaram num piscar de olhos castanhos desta minha aldeia que pouco dorme. Foram tempos fatídicos para a Humanidade perdida, irremediavelmente, entre o ter e o ser. De dia, vê-se um grande canteiro de obras. À noite, cintilam as luzes da moderna usina elétrica.

Dentre muitos fatos e pessoas, alguns marcam indelevelmente a alma acreana que lateja pelo meu coração. Nos dias que correm, já tão distantes daqueles idos, apenas as coisas boas teimem em não fazê-las esquecer, nunca.

Entre a Catedral e o Palácio do Governo se ergue, agora, o Palácio dos Bispos à frente do qual está o recentemente inaugurado Palácio da Justiça. Esse pequeno conjunto de edificações no meio de outras de menor porte já empresta ares de que um dia Rio Branco será uma grande cidade, e todos acreditam piamente nessa possibilidade, inclusive, este cidadão magnânimo, o governador José Guio-mard dos Santos, um homem que veio das distantes Minas Gerais plantar sonhos e colher realidades por aqui.

Lá do outro lado do mundo, acabaram com a guerra na base do sopapo, contra os japoneses, principalmente. Os americanos usaram contra eles a famigerada bomba atômica. Morreram que nem formiga na água quente. Coitadas das almas inocentes que pereceram no episódio.

Por aqui, os milhares de nordestinos que foram chegando, principalmente do Ceará, não tinham muita certeza do seu papel na defesa da paz do mundo. Poucos sabiam com clareza os objetivos reais da sua vinda aos montes para os ermos do inferno verde. Certo é que tudo saiu conforme o planejado. Os nossos arigós aprenderam a cortar seringa. Os aliados em luta contra os países do Eixo puderam usufruir da borracha produzida por eles, na Amazônia, para a fabricação de pneus para utilização na guerra. Enfim, estamos em paz, apesar de o confronto mundial ter ceifado, conforme escreveram os jornalistas da época, inclusive o amigo Joel Silveira, mais de vinte milhões de vidas marcadas por intrigas, discriminação étnica e muito sofrimento.
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E vamos apreciando e vivendo uma Rio Branco de gente de bem que vai evoluindo aos poucos. Cumpre observar que, desde o início, ainda nos anos 20, as pessoas por aqui foram se dando as mãos e estão construindo uma cidade a belos olhos vistos.

Sonhos noturnos se faziam realidades diurnas e foram unindo pessoas como Izidoro Pereira, José de Melo, Nilo Bezerra e Nembri de Brito, que se juntaram a alguns outros mais e fundaram essa joia rara que é o Rio Branco Football Club.

O que foi construído pelos ante-riores, mesmo sendo feito um pouco por cada um, não deixou de ser importante. Por isto, as minhas homenagens também a Oscar Passos, a Silvestre Coelho, a Raimundo Pinheiro Filho, a João Kubistcheck, a Amílcar de Menezes e a Abel Pinheiro, meus contemporâneos no Território Federal do Acre.

Salta aos olhos o trabalho hercúleo do major engenheiro militar Guiomard Santos em prol do Acre. Ele realmente trouxe mudanças de ordem econômica, social e cultural. Eis o lema da época: creio no Acre e nos acreanos.
Todavia, talvez ele acredite ser eterno.  A bem da verdade  –  e assim o disse quando tive oportunidade  –  falta-lhe uma qualidade: ele não sabe ensinar muita coisa aos seus pupilos. Não há seguidores que tenham visões mais claras além do partidarismo cultural provinciano por demais. O grande líder, apesar de uma visão clara da realidade, não ensinou aos seus alunos sobre o que pode trazer de benefícios para o Acre se forem bem pensadas as políticas sociais que tratem da saúde, da educação, de estradas, de indús-trias, de urbanização, e assim por dian-te. Não. Parece que os discípulos não conseguiram sair do beabá da política da perseguição, da calúnia e dos desmandos com o erário público.

Destaco e reconheço com bastante respeito o trabalho do governador urbanista Raimundo Pinheiro Filho, e do engenheiro agrônomo Custódio Freire à frente do Departamento de Agricultura. Assim como, o Acre jamais poderá esquecer a competência de Achylles Peret enquanto o maior tocador de obras de que tenho notí-cias até os dias que correm. Como sempre devemos lembrar os esforços dos engenheiros Pimentel Gomes e Goldwasser Santos. Mas há que considerar que estes foram zelosos servidores do Território, sim, mas eram dotados de espíritos eminentemente técnicos e arredios às coisas da política de fundo de quintal orquestrada por algumas aves de rapina.

É oportuno lembrar a mente brilhante e incansável de uma amiga muito próxima, a professora Maria Angélica de Castro. Filha de uma família abastada, essa moça veio de Minas Gerais, está sempre às voltas com currículos e programas, e é a alma do sistema educacional público do nosso querido Território enquanto diretora do Departamento de Educação e Cultura. Uma bênção de Deus.
Vejo ainda a pista de barro do aeroporto a receber o avião Ferchald, tipo Douglas, pilotado pelo Comandante Sérvulo e pelo Coronel João Donato. Ainda vejo a zanga de Tomé Manteiga extremamente intolerante com relação ao apelido. Na penumbra dou ouvidos a Océlio de Medeiros, o contador das histórias nossas. Estão gravadas na mente a arte dos músicos regentes Zeca Torres e Belarmino, além do Capitão Pedroca, este, misto de músico e construtor.
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Agora, já os inícios de noite são passados à borda de uma mesa de gamão jogado na calçada de casa, isto, de segunda a quinta, quando não chove. Mais ou menos o mesmo grupo, às sextas e muitas vezes também aos sábados, visita um estabelecimento do ramo da bebedeira. Trata-se do Pavilhão, de propriedade de Mustafah Zacour, um lorde na arte de receber bem os convivas mais abonados que por ali vão gozar os prazeres de Baco, como eu, José Nogueira do Vale, Wilson Sales  –  estes, funcionários públicos que comigo dividem as responsabilidades atinentes ao fisco federal  –  Felipe Assef, Garibaldi Brasil, Luiz Lima dos Santos  –  o Luisão, rei momo do carnaval acreano desde 1950  –  Rachid Duck, Júlio Mascarenhas, Antônio Loyola, Abílio Mendonça, dentre outros de frequência mais esporádica.

Por último, as bebemorações noturnas também estão a ocorrer no novíssimo Hotel Chuí, próximo à Escola Normal e ao Quartel da Força Policial. De dia, ou mais precisamente à tardinha, o bar da moda é o Aracati, estabelecimento cujo proprietário é um turco apelidado Babai.

Muitos, em altas horas, se acercam de uns estabelecimentos de moral duvidosa ou imoral com certeza, como o Chicarelli, lá pela Rua Seis de Agosto, ou em aventuras amorosas pelo Bairro Quinze, entre drinques, música de sanfona e violão e muitas mulheres da vida duríssima. Eu não sou dado a tais luxos.

E a família, em casa, segue em paz. Ou os filhos estão no Grupo Escolar Sete de Setembro, pela manhã, ou estudam em casa, à tarde e pela notinha, sobre a batuta suave e competente da nossa sempre amada dona  da casa e das nossas vidas.

Felicíssima ficou Latifa quando da primeira vez em que a acompanhei ao Cine Theatro Recreio. Em verdade, não há tanto glamour nem tanto conforto para a plateia, mas a película Gilda, com Rita Hayworth, foi exibida pelo menos umas dez ou mais vezes. Praticamente, toda a cidade a assistiu… E haja aplauso!
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Nota bastante interessante é o lançamento, em 1950, de um livro de crônicas acreanas escrito por um amigo. É!… O Garibaldi Carneiro Brasil, já inscrito enquanto membro da Academia Paraense de Letras, publicou o seu Mosaicos da cidade nascente, em louvor e em exaltação a Rio Branco.

Ainda guardo um exemplar do qual retiro uma quadrinha que dá bem o tom do humor e da picardia do nosso cronista:

Promessas e mais promessas
Posam de sentimento nobre:
Dinheiro na bolsa do rico
E pau na bunda do pobre.
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Hoje, as saudades não mais me incendeiam, apenas me aquecem o coração retorcido. Com relação ao que os meus circundantes pedem, algo vai relativo à vida íntima que não mais deve interessar a ninguém, principalmente, em vista dos janeiros que há muito já passaram dos setenta.

Quando da chegada em Rio Branco, já arranjei namorico, sim, com Eutália, uma dama do mundo e da vida, de ancas largas e cintura fina, bastante admirável, em saias longas plissadas ou godês. Depois, não mais. Minha doce e bela cinderela, a esposa querida, Latifa, presentemente encostada nos sonhos meus, se acreanou e, com ela no meu encalço, na minha vida, agora bem perto, a dividir alcova e carinhos, não mais pude me permitir às escapadelas extraconjugais. E valeu a pena enquanto Deus permitiu.

Só agora, depois de passados mais de quarenta outonos drásticos, já no inverno dos meus anos de anjo do sol poente, é que me permito relatar fatos da intimidade.
E a vida corre por aí afora, lentamente, como o belo Rio Acre dos meus dias mais felizes.

* Este é o Capítulo XLVII do romance O inverno dos anjos do sol poente.

Categories: Cláudio Porfiro
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