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A fábula do reino do faz-me rir

A vida seguia sempre bela e feliz no reino do faz-me rir. Havia passarinhos que saboreavam a relva fresca e o orvalho morno do meio-dia destes sertões amazônicos. Vacas pulavam de galho em galho, trinando e chilreando sob o luar de prata da doce hileia verde. Peixes, muitos peixes mesmo, iam e vinham de bar em bar, tomando cachaça, bebendo cerveja e, às vezes, fumando uns basilares, como dizia Sérgio Buarque, o pai do Chico.

Numa nesga da floresta, ali pelas imediações da volta da gameleira, eis que vivia um irmão do Gato de Botas e de Ronron, de espécie nobre, lógico, de agora em diante denominado Maracajá, posto ser ainda um gato, aos sessenta anos, rodeado de fãs cobiçosas, apesar do bucho proeminente, da careca reluzente e de uma meia dúzia de dente, com todo o respeito do mundo da gente gramatical.

Aí, não se sabe exatamente de onde, surgiu, no meio de um temporal doido e teórico, um rato de nome Aldenor Lascanheta que, por força do destino e da própria natureza cabocla, destemido, acercou-se do gato acima descrito fingindo querer-lhe a amizade, apesar das diferenças naturais entre um e outro. Eu já o vi e já fui tascando-lhe o carinhoso epíteto de Mestre Pente Fino, tendo em vista as suas peripécias no ramo da falcatrua, da burla, da mentira, do roubo, aqui e ali, em Plácido de Castro, Rio Branco ou Porto Acre, sempre dado e sabido como vivendo em lugar incerto e duvidoso… Pense num cabra safado!

Maracajá, de ascendência principesca, cursou graduação e pós- graduação na Universidade de Brasília. Escreveu crônicas e publicou livros. Construiu patrimônio considerável, comprou carros importados, se aposentou com saúde pela assistência social e vive hoje do bom e do melhor. Fez-se funcionário público exemplar, pai de três filhos machos e rijos da melhor espécie. Pense num cabra bom!

Mestre Pente Fino, ao contrário, teve formação acadêmica esmerada a partir dos botecos e vandevous do Papôco, com todo o respeito que tenho pelas pálidas almas das antigas quengas de lá. Aprendeu a enganar a humanidade desde cedo, viveu de trambiques e fugas, sempre tendo-lhe no encalço maridos vingativos, amantes abandonadas e dúzia e meia de bastardinhos tão desprezadinhos que só eles.

E haja história! Ô fábula linda!

Numa dessas manhãs reluzentes de domingo, lá ia o bichano fidalgo montado em sua hilux prateada, acompanhado dos filhos felinos mais robustos e inteligentes do mundo… Um eu chamo de Mano Cantor e o outro, de Mano Batera!… Além do Mano Médico que, naquele lindo dia, não fazia parte da comandita.

Então, houveram por bem apear da burra a diesel ali pelas imediações da Vila do “V”. Tomaram uma ou duas geladas e, de repente, não mais que de repente, eis que apareceu na porta do boteco o iluminado Mestre Pente Fino, doravante também denominado Dom Ratón, ainda não conhecido de Maracajá… E tome-lhe conversa. E haja mentira. O rato, todo pomposo, ensaiava um gran finale que seria uma volta a ser bem aplicada no educadíssimo felino domesticado.

– Marrapaz, eu já lhe conheço de muito tempo – disse o rato. Já li seu livro O Arigó. Inclusive, achei muito bonita aquela parte em que o senhor fala do seringal Bom Destino. Uma beleza!

Maracajá, envaidecido, só agradecia as palavras amáveis do maior sacana do mundo.

– O senhor trabalha na Universidade, né? Ah, eu tenho uns sobrinhos meus lá, que hoje já não são porque eu me desentendi com a tia deles… É o Zé Cláudio, metido a escritor, e o Marcos, procurador federal, filhos do Gibiri de Xapuri… O senhor conhece?

– Sim, é claro, são amigos meus há uns trinta anos. Gente boa.

Aí, foi a vez da tarrafa ser jogada por cima dos bichanos.

– Olhe, eu tenho uma madeireira aqui depois do “V”, bem montada, no capricho; mas apareceram uns caras do Ibama e me aplicaram uma multa enorme porque disseram que eu estava serrando madeira proibida; só que eu não vou pagar porque não quero dar dinheiro pra essa corja do PT… Eu não gosto de jeito nenhum dessa turma… E tem mais: eu tenho um caminhão carregado de cerejeira, já serrada, no pátio da serraria e, se é deles levarem, eu prefiro dar pra um homem honrado como o senhor… O senhor quer? Eu só vou é precisar do óleo diesel porque estou sem uma gota…

Maracajá, todo sabido, todo elegante, todo educado, já tamborilando um pagode no volante da égua, começou a achar bem interessante a proposta do safado. Era madeira que dava para construir uma boa casa, ou um galpão.

– Bom, eu quero, disse o gato. Agora mesmo vou dar uma passadinha na minha colônia e vou lhe mostrar o lugar onde a madeira deve ficar…

Aí veio a facada imperiosa do Ratón:

– O senhor me dá aí uns cento e cinquenta reais e eu coloco o óleo. De tardezinha eu já levo a madeira.

Aí ele se virou para os rapazes que deixaram de desconfiar do sacana porque ele tinha falado coisas plausíveis por demais.

–  Arranje também um isopô porque eu tenho lá na serraria um açude lotado de tambaqui, cada um com uns quinze quilos. Eu dou dez pra vocês tirarem o gosto.

 – Não, não vai ser possível. Hoje nós ainda temos que ver o Rio Branco Football Club ganhar…

Depois, olhou para o Mano Batera que ouvia um som legal:

 – Porra, cara! Que CD bom, rapaz! Você tem como fazer uma cópia?

– Sim, tenho. Claro!

– Faz uma cópia que eu vou te dar um casal de mutum.

Dom Ratón já estava exagerando. Se lhe houveram aplicado uma multa de cinquenta mil por causa das toras de cerejeira; agora, então, com mais esse crime ambiental dos mutuns quase extintos, eu mandaria o fi-duma-égua direto pra forca… Vá se lascar!

E foi só.

Acabou-se o jogo. O Rio Branco não ganhou e, pra tirar a moleza, o pequeno grupo montou de novo na hilux prateada e rumou para a colônia. Lá chegando, aí pelas dez da noite, notaram que não havia madeira nenhuma.

– Puta merda! Levei um tombo daquele sacana. Ah, fi-duma-vaca!

Mas Maracajá é um cabra sacudido. Dias depois, encontrei com o felino educado tomando umas e outras lá no Varandas Bar. De pronto, veio ele à mesa para me fazer este importante relato, findo o qual deixou mensagem e lição próprias dos homens de bem.

– Se eu encontrar aquele sacana, dou-lhe mais cento e cinquenta reais e os meus parabéns só porque achei o golpe dele altamente sutil e inteligente demais.
Não que Maracajá precise aprender muita coisa com alguém. De forma alguma. Maracajá é do bem. É um felino bacana. É primo-irmão daquele que um dia ensinou tudo à onça, menos o salto de costas com o qual se salvou das garras afiadíssimas da maçaroca.

* Fabulista fabuloso.

Categories: Cláudio Porfiro
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