O voo da companhia Paraense me trouxe, primeiro, ao aeroporto de Ponta Pelada e, depois, ao Val-de-Cães, mas pouco pude ver de Manaus ou de Belém, das quais ainda guardo boas lembranças, notadamente da segunda. Uma leve turbulência e o avião Douglas, pilotado por João Donato, quase se espatifa no ar, ali pela região da divisa entre Pará e Amazonas. Já a viagem até o Rio transcorreu sem nenhum problema, apesar da má reputação da Pan Air, uma empresa aérea que, como a primeira, também está à beira do precipício da bancarrota.
Divisa-se, logo depois do rompimento das nuvens, o morro do Pão de Açúcar e o Corcovado ao longe. Aí, o avião desce rente ao mar, o que causa um certo temor em qualquer sujeito metido a macho, como eu, que estou tremendo feito vara verde, no dizer do caboclo amazônico beiradeiro.
No Aeroporto Santos Dumont, espera-me a filha querida em lágrimas que copiam as minhas. O filho demonstra muito contentamento e me abraça efusivamente. Cheguei, enfim, ao seio do meu reduto primeiro e do meu amor maior. Já que não tive irmãos, os meus filhos e netos são o elo que me liga à minha história, ao meu passado. A minha família está feliz demais, na graça de Deus.
Neste recanto barulhento do mundo tudo é muito diferente. Nada recorda a calmaria amazônica vivida mesmo na cidade de Rio Branco. Aqui, a política está em polvorosa. Ainda não consigo opinar, uma vez que a vida, agora com alguma regra, anda em velocidade a mil e as preo-cupações sociais e políticas são comentadas com muito cuidado pelos de casa. Os mandões da República não se entendem. Os choques de ideias ocorrem todos os dias entre todos. Há greves de trabalhadores e estudantes. Muitos são presos e deportados. De dia, pela manhã, leio o Jornal do Brasil e o Globo. Depois da sesta, folheio a revista Cruzeiro. Sou assinante dos três. Passeio em Copacabana quase todas as tardes, para onde vou de táxi. O banho de mar pela manhã é na ponta da Praia Vermelha, ou no Leme à tardinha, onde tomo quatro chopes na Prado Júnior. Às sextas, à noite, aí pelas sete, vou à vida pulsante do bairro da Lapa. Aos sábados, vou ao Cassino da Urca, onde vejo as divas de pernas grossas e bundas descomunais a reviver o teatro de revista de Carlos Machado. Às quintas, encontro Mara Rosa, uma moça bem apanhada que mora sozinha e me deixa pousar nas suas alcovas sempre que posso ou quase todos os dias. Em verdade, tenho agora, na viuvez, um amor sobressalente. Um xodó na Rua dos Inválidos, no centro velho do Rio.
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Hoje, já se passaram alguns anos desde a minha chegada à cidade de São Sebastião. Umas vezes, em altas horas, fico a divagar e vou anotando alguns pontos de vista que me assaltam repentinamente sem que eu os permita. A idade que avança me faz lembrar os clássicos gregos que pregavam que só pode ser rei aquele que atingiu a oitava década. Por enquanto, vou me preparando como posso, às vezes lendo uns textos modernos, como os de Alceu Amoroso Lima, ou de Sérgio Buarque de Holanda. Outras vezes, passeio pelo Cony ou pelo Trevisan, jovens, mas muito bons.
Num desses dias mesmo, li no suplemento literário do Jornal do Comércio, um texto do Salvador Dali. De lá apanhei um trecho que quase ou talvez resuma o meu estado de espírito na atualidade:
Talvez seja necessário reorientar ou reordenar a minha bússola. Decerto não seria tudo tão radical, mas louvo o poeta que me caiu no esquecimento. Dizia ele que o melhor da poesia é sempre produzido nos momentos das grandes convulsões íntimas. Não. Não seria bom ir ter com as paixões a esta altura dos acontecimentos existenciais.
É mais ou menos por aí. Envelhecer – ou ver o seu sol se pôr – é um procedimento um tanto metodológico mesmo. Alternam-se bons e maus pensamentos a serem colocados numa ordem muito lógica própria dos mais maduros… Mas vai-se devagar e sempre, como no samba.
Pensando melhor ainda, concluo que, como todos os meus contemporâneos cariocas ou aqui erradicados, tenho envelhecido e, por estar observando atentamente, e bem de perto, esse processo, noto que, apesar de as forças começarem a falhar e as potencialidades deixarem de ser as que eram antes, a vida pode, até bastante tarde, ano após ano e até ao fim, ainda ser capaz de aumentar e multiplicar a interminável rede das suas relações e interdependências e como, desde que a memória se mantenha desperta, nada daquilo que é transitório e já se passou se perde. Aproveitemos, então, todas as quinquilharias da prateleira do nosso tempo velho de guerra!
Melhor, pois, é tomar anotações, agora por último, em plenos anos noventa, numa parafernália moderna chamada computador. Este, sim, um grande ajudante nos voos descritos acima. Ora, se mantenho os neurônios desenvolvendo alguma atividade que os instigue, exercite, fácil será explicar para os mais moços a tal longevidade que é tema de muitos diálogos entre eu e eles.
Fugi das preocupações desde cedo porque trabalhei para viver este futuro alongado sem maiores perturbações, notadamente as financeiras. Tenho visto muitos morrerem de problemas cardíacos porque os descendentes lhes tolhem a liberdade ou lhes extorquem o dinheiro e a paciência na marra. Um homem novo aper-reado é um transtorno. Um velho sucumbe porque o sangue logo lhe sobe à cabeça e o derrame cerebral o leva de uma vez para onde Deus bem quiser. Eu, cá de minha parte, não tenho esse tipo de problema e vou vivendo à vontade.
Talvez não pudesse ser de outra forma. Os filhos e os demais parentes vão muito bem de vida. Samira ainda é médica do sistema público e com consultório. Jorge é engenheiro da Light. Faride, uma neta, estudou na Universidade Nacional e é procuradora federal. Carmem, outra neta, cursa Medicina. Um outro neto está concluindo o segundo ciclo no Colégio Militar. O mais novo estuda no Colégio Pedro II. A residência da filha, casada com Arnold, comerciante, é espaçosa por demais e até me cabe muito bem em aposento grande, particular e privativo. O bairro da Urca, onde residimos, não tem nenhum desassossego. O filho mora a duas quadras. Não conheço obstáculos. Não vivo de criar problemas, enfim.
Nos últimos tempos, são constantes os passeios pelo bairro em companhia de dois velhos generais sorridentes, esquecidos do seu passado pouco recomendável.
Antes, há uns dez anos, ainda fazia incursões noturnas ao Café Nice. Lá, em época passada, fiz contatos com Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Cartola, Ciro Monteiro, Rui Trindade, Jota Valentim, Hélio Fidalgo, dentre outros tantos poetas que descem do morro. Há ainda recordações da pesada. Cassei confusão na Saúde. Dancei bolero na Estudantina. Apaixonei-me na Gamboa e passei algumas madrugadas no Beco das Garrafas.
Depois, veio a época do jornalismo literário em colaboração com O Diário do Comércio, do Rio de Janeiro, e A Gazeta Capixaba, de Vitória do Espírito Santo, para os quais tenho escrito, já por vinte e nove anos, cerca de duas mil crônicas e um pouco de poesia. Foi também um tempo de muitas experiências e de muitas anotações acerca de tudo e, principalmente, da beleza das mulheres incomuns desta terra onde a praia, o mar e a montanha é que dão as ordens da estética para o desenho do perfil generoso dessas cabrochas que ainda me causam tão somente arrepios. Não mais que arrepios…
* José Claudio Mota Porfiro é escritor.