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Apologia da solidão

SolidãoAndo deveras arredio nos últimos tempos. Prendo-me a detalhes mínimos de uma vida, a minha, ainda com muito sentido, apesar dos ingredientes amargos experimentados há alguns poucos anos. Felizmente, não sou dado a vícios mais graves, além do que deve ser razoável  –  presumo!  –  para quem se dá a certos prazeres apenas na sexta à noite e aos sábados durante o dia. E só. Sou rijo que nem madeira de marmeleiro. Tomo vinho de jatobá para ficar mais forte. Se fosse um fraco, por certo, teria seguido por outros caminhos tortuosos que talvez me levassem à capitulação final.

Mas há muita responsabilidade e muito no que pensar e ponderar. As saudades são dores de um parto que perfuram o físico e o espiritual. Amanheço com o corpo todo doído em vista dos rios de lágrimas vertidas durante a noite. É claro que toda essa grave compenetração, esse quase tédio e essa desdita noturna errática, se devem às saudades da família, antes tão feliz, e é debitada ainda à preocupação com os filhos outra vez distantes.

Na escuridão da noite, muitas ou todas as vezes choro, mas sou consolado pelo silêncio que me leva a pensar, como os coqueiros altivos e  tortuosos, ou como os rochedos imperturbáveis e austeros, coisas muito distantes, do fim  do mundo, porém razoáveis, talvez. Certo é que, aos quarenta e quatro de idade, moro no Acre, sozinho de Deus, estou viúvo há oito anos e busco entretenimento, quando posso, aqui e ali, numa rodada de amigos que vão desde a cerveja ao jogo do gamão ou do dominó. É o que há para fazer, uma vez que, agora, não tenho uma esposa, já não faço parte de um casal que, comumente, poderia ser convidado para folguedos de ordem familiar. Mas vou levando essa vidinha pacata sempre explorando e exortando a dimensão poética que a alma me empresta. Ai de mim se assim não fosse.

***
Passaram-se os anos lentamente, sofridos, lancinantes. Aprendi a conviver com a dor e a saudade. Fios de uma navalha tênue ainda me cortam as carnes e a alma em estado de letargia eterna. É assim que me parece. Ondas de calor de inverno invadem o meu quarto solitário. Vivo um diapasão lúgubre desde há muito. Poucas vezes recebo visitas femininas noturnas. Ainda me sinto o viúvo mais choroso deste rincão de Deus. Mas, mesmo assim, as coisas vão acontecendo, entretanto contribuem pouquíssimo para a melhoria das dores da minha maloca de solidão e refúgio lacrimejante.

Melhoro dos males do amor a cada dia, devagarinho, lentamente. É o tempo que dá o seu recado ao mesmo tempo duro e terno:

– Hás de te acostumar, seu casmurro, até com o que for pior para a essa tua alma mimada.

Estes são os meus últimos dias em Rio Branco. Já sinto saudades do convescote, do carteado, da bebedeira e das noites folgazãs com a turma da fuzarca. Foi-se o carnaval. Passou a Semana Santa. Em meados de março deste 1960, depois de vinte anos de trabalho, estarei em transferência. Em poucos meses, estarei aposentado. A aposentadoria com vinte anos de serviço faz parte do acerto inicial. Os funcionários que se atrevem a trabalhar em regiões distantes, como o Acre, adquirem este direito. Dizem-na, lá pelo Rio de Janeiro, uma terra íngreme e insalubre, o que deu cabo da vida de Latifa, a esposa querida. Encerrar-se-á, por aqui, a minha participação enquanto burocrata coletor federal da Fazenda da Pública lotado no Território do Acre.

A janela, à tardinha, é mais uma vez, como todas as tardes, o meu nicho de solidão, refúgio, repouso e, ao mesmo tempo, compartilhamento social. Estou só e, à distância, vejo e analiso tudo o que ocorre num raio de cem metros, notadamente, com as pessoas. Sou um humanista de formação e estou certo desde sempre de que o homem é que deve ser engajado ao meio ambiente. É que, debruçado à janela, do alto, vejo as pessoas passarem rente à calçada e penso nos seus sonhos, nos seus filhos, nos seus cônjuges, nos seus projetos de vida às vezes tão irrisórios.

Retalhos de uma música da moda me entristecem a alma encolhida e escondida nos desvãos da sorte:

Mas se eu fui pecador condeno a lua
que abandonou a rua
e suplico o teu perdão.
Perdoa meu amor este pecado
sublime fruto de te haver beijado.

***
É esta uma época de despedidas. Já estou com a papelada toda pronta, no Ministério do Interior, Rio de Janeiro, para que verifiquem a contagem da minha temporada de serviços no Acre.

Tenho alguns direitos, dentre os quais a apenas vinte anos de trabalho, na Amazônia, que me levam a uma aposentadoria bastante razoável, principalmente, se considero que tenho os meus meninos muito bem encaminhados na vida. Os mandões da República avaliam que a vinda e a estada por aqui são dignas de premiação trabalhista. Para o pessoal do poder, há toda a sorte de perigos à espreita de um empregado federal, desde a picada de uma cobra à mira de uma carabina. Por conta disto, é tempo de largar tudo e ir embora viver o resto da vida onde quer que eu queira ou que o nariz aponte.

Pior é a ansiedade destes meses finais que se consomem muito vagarosamente, como se, desta forma, quando bem quisessem, pudessem enfim dar por terminado o meu castigo e por pagar a minha pena de alma errante incurável. Coisa deste destino incomum com que fui presenteado por Deus. Vá lá!

***
O último dos meus carnavais em terras do Acre é algo muito alegre, feliz e triste. Partirei em seguida. E a Rádio Difusora Acreana manda brasa:

Sonhei com você e o azar foi meu
joguei mas o bicho não deu
Só pra chatear, a rádio patrulha chegou
E eu fui cercado, dos sete lados
Quando o guarda me apanhou
Têje preso, têje preso, sim senhor!
E a outra é assim:
Ah, papai Adão, me conta como é que é
Se a Eva era branca
Como foi que nasceu Pelé
Ai, ai, ai, ai, Adão
A história não tem razão
Se a macieira é o paraíso
Na macieira também estava Jamelão.
 
***
Um sono refestelado me fez reparar as energias da noite da sexta-feira que se estendera até além das quatro da madrugada seguinte, a de hoje. Dormi até as duas, tomei uma caneca de chá morno de casca de laranja. Estou no ponto. Eu e o meu fígado. Voltei ao velho e bom Restaurante Al Manara, da Rua 17 de Novembro. Comi quase uma galinha inteira e bebi vinho da melhor safra, para a cura da ressaca. Agora, já são mais de quatro e, outra vez à janela, vejo passarem pierrôs e colombinas, mascarados, homens vestidos de mulher, senhoras e senhorinhas que arrastam crianças bem vestidinhas em suas calçolas brancas e camisas da mesma cor abotoadas até o pescoço. Coitados. Lá de cima da rua, vêm as meninas da Dona Maria Turca, em fantasias muito vistosas. (Como são belas estas moças miscigenadas entre os turcos e os brasileiros!)

Todos estão rumando para a praça em frente ao Palácio Rio Branco. É certo que daqui a pouco estarei por lá para apreciar a passagem do Cordão da Capoeira e o bloco das moças que vêm do outro lado do rio para enfeitar, e muito, o final de tarde. Apreciarei ainda o Baile Infantil do Rio Branco Foot Ball Club e, mais tarde, bem mais tarde, no mesmo clube, hei de participar da Primeira Noite de Momo, o grande baile de abertura do Carnaval de 1960, à mesa, em companhia deste pândego e bom amigo Garibaldi Brasil, dentre outros do mesmo nível que nós, sempre dados ao pecado da luxúria regada a uma boa cerveja e, mais tarde, no colo de uma dessas deusas morenas que pululam as alcovas dos que têm mais ou menos amor ou dinheiro para dar, como nós.

A festa é supimpa. Pior de tudo é que o Zéca Torres, regente da Banda de Música da Guarda Territorial, andou dizendo por aí, já faz alguns meses, que a minha voz é afinada. Vez por outra canto umas duas ou três modinhas ou canções, dependendo da ocasião. Hoje soltarei a voz em marchinhas de carnaval, é certo.

São dias de muita orgia, de muita farra, de muitos almoços fartos nas casas dos mais bem aquinhoados, como o Gari, o Felipe Assef, o Borba, o Clóvis Fecury e o Felício Abrão, dentre outros. Estou em todos os lugares onde a animação começa ao meio dia. Há comida da melhor qualidade e cerveja gelada comprada com a participação da turma de fogueteiros. São folguedos como talvez só o povo desta terra escondida e feliz sabe fazer.

Mesmo aí a boa música não falta. Os artistas do dia são praticamente os mesmos da tarde e da noite. Quando um cansa ou fica ébrio, logo um outro, talvez até de mais qualidade, o substitui.

Última noite de carnaval. É madrugada. A folia continua em alta. Todos são felizes. Até eu que também estou entorpecido, para falar em palavras mais suaves. São os eufemismos próprios das almas dos que se dão à luxúria e às manias e vícios de Baco.

Agora são seis da manhã e o bispo chama para a Quarta-Feira de Cinzas. Mas a turma da fuzarca segue bêbada e feliz, rumo ao coreto da Praça Maior tocando, bebendo, brincando e festejando o sol raiar.

Ah! Quantas saudades daquela terra e daquela gente.

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