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Era de perdição

Era de perdiaçãoEsta é uma alusão indireta ao romance realista português de Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, escrito ainda nos oitocentos. Diria ele mais ou menos que a amante que chora o amante que teve, na presença do amante que se lhe oferece, quer persuadir o segundo que é arrastada ao crime pela ingratidão do primeiro. Ninguém não quer prestar apenas por seus deméritos e sempre joga a culpa em quem muitas vezes não tem… E não é esse o nosso caso.

Aquele era o sol da manhã dos nossos verões tão iluminados. Também, pudera! Não havia queimadas…  Depois, torrentes caudalosas inundavam os espíritos amazônicos. E haja água. E haja esperança…  Sorríamos para o nosso tempo com os pés fincados na terra fértil deste rincão e a cabeça vivendo já um futuro que logo veio. Éramos estudantes, sim, porque estudávamos desde cedo do dia, até a noitinha. Nas férias, líamos romances de aventura ou nos debruçávamos sobre o dicionário sorvendo alguma coisa aqui, outra ali. Buscamos erguer e erguemos, com esforço, muitas felicidades. Enfim, conseguimos brindar com júbilo uma época de muitas conquistas juvenis mesmo nos vestibulares e em outros concursos públicos. Graças a Deus!

Ventos do norte não movem moinhos, no dizer do poeta… E nunca moveram… Mudaram as estações do ano e a verdade das almas, como dizia Porfírio, o filósofo neo-platônico, ainda nos confins da idade média. Arrastamos-nos pelos séculos e séculos da época dos homens comuns como esta crônica. Atravessamos tempos de pragas, maldição e violência. Então, finalmente, muito exaustos, chegamos ao inesperado terceiro milênio. Por aqui, temos esperado do humano uma obra magistral em favor de si próprio, mas a desagregação dos povos e a degeneração da espécie ultrapassam os umbrais da decência e da dignidade. Serviram-nos, antes, o vinho, o pão e a cevada. Agora, fazem-nos sorver o vinagre e deliciar-nos com a rabugem. Esta, sim, é uma época de descaminhos e desilusões.

O mundo não parou. Eu próprio já completei o quinquagésimo quinto ciclo ao redor do sol. É verdade. Já atingi a quinta década, mas ainda não sou filósofo, felizmente. É-se, certamente, ao alcançar o oitavo decênio. Por enquanto, me comporto bem, pois dizem de mim apenas um livre pensador e um cronista de meia tigela que observa o tempo vão e não consegue parar para rir, uma vez que tudo perdeu a graça.

Do alpendre ou da janela do meu solar e do meu tempo diviso a juventude classe média perdida em meio ao turbilhão das informações falseadas, dos alucinógenos sintéticos e da imbecilidade do consumismo desenfreado. Montado num carrão japonês prateado, o Mauricinho pode tudo e acha que o tamanho do pênis é proporcional ao tamanho da Hilux… Como se tamanho valesse muita coisa… Em verdade, ensinaram-lhe que, para os mais abastados, a competência e o conhecimento não são categorias a serem aprimoradas. É preciso aprimorar, sim, as teorias e práticas relativas à burla, à malversação, à improbidade e à tramoia geral.

– Mamãe! Fui ao shopping e comprei um par de esqui para o gelo. Comprei também uma prancha de surf, roupas de escafandro e uma gaiola de chapa retorcida onde devo enfiar a minha alma encharcada de cocaína…
 O joão-das-nuvens acima mora nos trópicos esfumaçados do Acre e gasta os créditos do cartão de um pai atolado em dívidas sempre crescentes, que bem justificam o fundamentalismo babaca da nossa era de devaneio e perdição.

Do outro lado do Bosque está o bairro da Paz. Qual paz!? Lá há pobreza e a brutalidade humana atira as novas gerações no esgoto da promiscuidade e do escárnio so-cial. Os jovens das classes menos favorecidas estão atordoados em meio ao descaso dos pais que não mais sonham em lhes ver felizes, quem sabe, um dia. E, ainda, mourejam às voltas com a falta de oportunidades que lhes são negadas por um sistema que privilegia a tão poucos. Aqueles moços e moças não estudarão nas universidades públicas porque não tiveram preparo intelectual suficiente. Não estudarão também nas faculdades particulares, simplesmente, porque não dispõem do dinheiro com o que poderiam ter comprado muitos diplomas e nenhum caráter.

– Moço! Quero emprego. Quero trabalhar na sua cozinha infecta e, mais tarde, quem sabe, se for do seu agrado, preencherei outras lacunas.

A escola não mais sequer ensina a sonhar, uma vez que se perdeu no pântano das teorias inócuas que passam ao largo da nossa realidade social escabrosa. Não valoriza os verdadeiros mestres, transmissores reais de conhecimentos, e toma poucas medidas que possam significar melhoria da qualidade do ensino para o desenvolvimento de que o Brasil precisa.

A família se arrasta no lamaçal da indignidade, com pais tornados fantoches e almas penadas nas mãos de filhos afeitos às drogas e a prostituição.

– Papai, empresta-me o carro que você roubou ontem?

– Aqui estão as chaves! Vê se troca o carango por canabis sativa…  Na volta, conforme o teu estado psicótico, vê se não me bate muito… Na verdade, apanhar até já se tornou agradável para a minha alma indolente…
Com um bom pastor, outro dia, fiquei a trocar algumas ideias relativas às religiões e ao trabalho social dos religiosos. A conclusão a que chegamos é que as igrejas e credos tentam e até conseguem fazer alguma coisa, não obstante, hoje, ser necessário observar que a obra de católicos e evangélicos já mostra resultados alvissareiros, mas ainda insatisfatórios.

E aí? Outra vez quem blefou e levou a melhor foi o financista sórdido que cobra juros escorchantes do primeiro zé-ruela que aparece com um projeto através do qual será montado um rentável negócio no mundo dos entorpecentes e/ou da prostituição. Ele não se importa com o fato de o próprio filho ou filha passarem a ser, quem sabe, clientes do empreendimento. Todos, juntos, têm adoecido…  Então, os cidadãos de bem, assaltados na calada da noite pelas vítimas das drogas, através dos impostos, erguem os hospitais e sustentam o com-balido sistema único de saúde encarregado de fazer o tratamento do jovem pústula, para que ele logo volte ao convívio anti-social.

Uma merda! Só quem leva vantagem são os grandes capitalistas que, de uma forma ou de outra, sempre acabam lucrando.

Esta é a minha era… Uma era de perdição.

* Cronista dos quadros da Universidade Federal do Acre: www.claudioxapuri.blog.uol.c om.br

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