Mesmo em fase de queda livre, parte considerável da elite carioca continua com este ar senhorial, pretensioso, acima de esnobe. Ainda que despenquem vertiginosamente, que devam o fundo das calças rotas compradas no cartão de crédito já em fase de penhora, não conseguem perder o nariz empinado, a feição enojada e metida a aristocrática herdada dos tempos da Princesa.
E eu, cá dos altos da Rua Prado Júnior, em férias, fico a rememorar o fator histórico que deu origem ao estado de coisas atual. Em termos territoriais, é certo, a triste e linda zona sul não chega a ser sequer quinze por cento do Grande Rio. Aqui tudo é muito bonito, realmente. A polícia está vigilante e em cada esquina há um ou dois guardas zelando pelo sossego dos endinheirados, ou pela sede de consumo dos turistas que agora estão de volta e aumentam em número a cada ano, pelo menos até a copa do mundo de futebol.
Bom mesmo é que os cariocas descobriram agorinha mesmo que as suas indústrias foram para Sampa e Belô. Eles só dispõem hoje, enquanto fonte de renda, do turismo e das tetas da Petrobrás que já estão sendo divididas com as outras crias.
Todavia, o populacho, dependurado nos seus barracos infectos, nos altos dos morros, vive ao deus dará, desde o tempo em que a Isabel o tornou livre e os enxotou no rumo de arrabaldes e periferias tão miseráveis quanto as vilas da Etiópia ou do Sudão, da Guatemala ou do Haiti… E lá se vão cento e vinte e quatro voltas ao redor do sol de quarenta graus que deixa o ambiente ainda mais doentio. Quiospariu!
Todo esse cenário bizarro só é novidade para as lideranças deste Estado lastimável de coisas, chamado Rio de Janeiro. Hoje, os descendentes dos negros africanos aqui desembarcados alhures se fazem acompanhar de nordestinos paupérrimos e brancos pobres vindos dos mais equidistantes rincões do Brasil. Todos, juntos, mas desunidos, compõem a teia social mais repudiada de que já se teve notícia por estes rincões do sudeste brasileiro.
E tudo isso nem chega a ser chocante. A miséria dos barracos nada significa para os bacanas da zona sul que não os denomina cariocas, mas os têm enquanto aquela plebe ignara e rude que habita a periferia e só aparece quando mais uma catástrofe desafia o poder de justificativas chulas vindas do Governo do Estado.
Pior é que ando por aqui desde os anos oitenta e observo que a cada ano acontece a mesma calamidade ocorrida há doze meses, no ano passado. Quando não é um pedaço de morro que desaba, é uma cidade que se alaga, ou vice versa, ou as duas coisas juntas. Isso, sem falar no absurdo das balas perdidas que, no mais das vezes, procuram as cabeças das crianças, como se elas tivessem algum tipo de culpa além da falta de sorte que é terem nascido pobres.
O governador, como bom carioca, é um especialista em desculpas esfarrapadas. Conversador versátil e desenrolado, ele justifica tudo, a cada flagelo. É este o mesmo que há dois anos disse que faria e aconteceria quando do desastre na região serrana. E nada foi feito até os dias de hoje. Quando um mero sereno de verão ameaça a serra, é um Deus nos acuda. Bem as torneiras secam em Pedra de Guaratiba, a chuva inunda Xerém. E salve-se quem puder, exatamente porque as encostas não foram escoradas por concreto armado, as casas não foram reconstruídas, ainda há muito entulho e, o que é pior demais, na semana passada, na hora da onça beber água, quando as nuvens se derreteram e o pau d’água despencou, nenhuma das benditas sirenes houve por bem tocar porque um bêbado, um doido e um botão não fizeram a sua parte. Pô! Logo elas que, segundo o governador, salvariam a humanidade do apocalipse. Enfim, o que houve é que apenas o populacho ficou encharcado até a alma esperando pela benemerência do nosso descobridor em tempos de relativa democracia muito à brasileira.
– Cabral! Você prefere pão ou quer mais circo? Já não basta? – Foi este o brado de Ibrahim Sued que, do inferno, ainda se arvora a porta voz da nossa burguesia de cambalacho.
Aí, inventaram o tal kit calamidade.
– Que porra de geringonça é essa? – Perguntaria o nordestino-carioca favelado. (Mil desculpas! A denominação politicamente correta agora não é favela, mas comunidade, como quer o descobridor.)
Mas tentemos explicar mal explicado mesmo. O kit calamidade é uma espécie de pacote contendo boias para quem já sabe nadar, esparadrapo para quem não é enfermeiro, máscaras de gás sem gás, vassouras, rodos, dentre outros congêneres a serem muito mal aplicados ou usados quando da hora necessária; e está preparado desde junho, quando um incêndio varreu as encostas do Morro do Tuiuti. Repare!
Isso não é coisa de Deus, não, minhas senhoras. Observem como tudo se assemelha à indústria da seca no nordeste. Aqui e lá os improvisos são sempre péssimos. As justificativas são pusilânimes e safadas. A cada seca ou a cada calamidade votos se somam de forma a sempre eleger uma casta de políticos que tira proveitos da miséria dos mais fragilizados.
Pior é observar essa porra de afinidade do suburbano com o lixo. É estranho demais. Tudo o que não presta é colocado pela população em qualquer lugar e os governantes não dão um destino inteligente também porque parece gostarem de ver aquela porcaria toda.
É verdade! Joãozinho Trinta estava doido quando falou que pobre gosta de esplendor e quem gosta de lixo é intelectual. É até masoquismo e gozação qualquer um dizer gostar do luxo das novelas e dos desfiles carnavalescos através de um televisor de poucas polegadas colocado dentro de um barraco com janelas de lona e paredes de papelão. É pura sacanagem… E o lixo não é criação de repórter, é real.
Vejamos porque acontecem os alagamentos. É porque o lixo não é recolhido, mas depositado nas esquinas aguardando que alguém não faça o que deve ser feito.
Visitemos a periferia, meus amigos de cá. É uma grande imundície, apesar de muitos dizerem que não.
Ano passado, então, fui de Cabo Frio até Macaé, num ônibus roto. Passei por Búzios e Rio das Ostras e observei que a estrada é uma grande porcaria. A nossa – a de Xapuri – é de primeira categoria apesar de ainda não contarmos com os dividendos da exploração do petróleo.
Onde foram parar os royalties, senhor Sérgio? Nos cofres do Cavendish e de outros apaniguados que brindam as chuvas e os desmoronamentos com champanhe francês e caviar, em companhia do descobridor, é claro, e em viagens caríssimas de jatinhos e helicópteros pagos a partir dos impostos do cidadão comum que nada pode fazer além de indignar-se.
Então, a partir deste boteco do Leme, agora e aqui, fico a filosofar mal e rasteiramente. Entre estes hoje amigos que me sorriem porque querem gatunar o meu dinheiro, todos são oportunistas e cada um faz só por si. O Criador é que quebra o galho e tem feito muito por todos, apesar da empáfia e da antipatia dos muitos que já nasceram azedos, de mal humor…
Mas até já cabe aqui dizer que Deus fez e o diabo passou a cuia. Lambuzou, sacaneou, melou… Entortou tudo o que havia sido tão bem feito.
Todavia, ainda faz bem aos olhos ver o mar, a praia, a colina, o verde, a poesia, sem o humanoide carioca disposto a tudo degradar, inclusive as suas almas.
Fazer o quê? Depois pensaremos juntos apenas no que não deve ser feito em benefício de ninguém. Por enquanto, esqueçamos as crueldades da vida. Por aqui, já chegou o Carnaval! Fiquemos todos bêbados e hipnotizados ante o império de Momo. É só a partir de catorze de fevereiro, então, às quinze horas, que a realidade se fará mais uma vez megera indomada a brandir o seu martelo na cabeça dos que pedem pão, mas gostam muito mais de circo. Por Deus!
*Cronista: claudioxapuri.blog.uol.com.br