A marca alcançada pela previdência estadual é fruto do trabalho de pessoas que levam à frente um projeto como se fosse a sua única razão de viver. É quase sacerdócio. A esses, Bertold Brecht, o dramaturgo alemão, denomina imprescindíveis. É gente que luta feito caudilho na busca de objetivos e na perseguição de metas. É bom tê-los sempre por perto. As instituições e os poderes constituídos até agradecem, penhoradamente.
Pensemos, entretanto, no imbróglio que é a previdência nacional. Considere-se, é claro, o tamanho do primeiro fator – acreano – se relacionado ao segundo. Mas observemos, principalmente, nuances e situações inimagináveis que geram o gigantismo dos problemas do INSS, levando-se em consideração, ainda, o fato deste analista de meia tigela não ser especialista em nada e muito menos em previdência social. Senão vejamos. Teríamos, nós, grana suficiente para o tratamento desta chaga social chamada desperdício?
As grandes tetas estão inchadas porque não suportam a pressão de uma dívida desmesurada que cresce a cada dia. Os úberes racharam porque o leite está pedrado.
Vamos, então, aos fatos que pesam mais que as tripas, posto que estas já foram, antes, bem limpas, com cal hidratada até.
Aí, dois moços de classe média, há uns vinte ou mais anos, às seis da manhã, no bairro do Educandos, em Manaus, saíram do bangalô em que realizavam festinha e foram comprar basilares numa boca de fumo não tão distante dali. Os pais de um deles haviam viajado para o sul, segundo afirmaram os vizinhos entrevistados pela rádio Riomar. Os bacaninhas não estavam nem aí, como também, não andavam tão saudáveis àquelas horas matinais, tendo em vista a madrugada desvairada entre cheiradas, baforadas e destilados a dar com o pau. E partiram velozes e furiosos no rumo do conhecido desconhecido.
Eis que na volta, na curva da Rua Borba, o piloto Mauricinho abriu demais no sentido do meio da pista, mas foi parar do outro lado, debaixo de uma velha caminhonete carregada de farinha. Não tiveram direito nem ao último suspiro. Pescoços quebrados, já sem vida, foram colhidos, aos pedaços, por curiosos e levados para o hospital do Aleixo, em outra picape aberta. Fraturas expostas. Muito sangue tingiu o asfalto novinho em folha.
– Uma pena! Coitados deles e dos pais… Tão jovens! – Foi o que disse este humanista aparvalhado ante tanto devaneio e tanta doidice que nos prega a vida.
A culpa depois recaiu sobre o Amazonino, prefeito, que, segundo a mãe de uma das vítimas, havia asfaltado e deixado todas as ruas do bairro, e as adjacentes à sua, muito bem urbanizadas, de forma a facilitar as idas e vindas dos moleques à casa do moço que negociava entorpecentes esfumaçados e pó de cheiro venenoso.
– Se as ruas ainda estivessem esburacadas, os meninos não teriam morrido. Porque foram colocar tanto asfalto? – Esta foram as palavras de uma matrona de roupas rotas e cabelos desgrenhados que, depois, disse ser tia de uma das vítimas.
Nota mais supimpa, no entanto, tirei do comentário fora de contexto feito por um velho marinheiro do Parque Dez, o Alcebíades:
– Ora, ora! Olhando pelo único lado bom do evento trágico demais, pelo menos, eles não ficaram hospitalizados, dando prejuízo ao Estado e às pessoas que pagam impostos, mas não andam em motocicletas envenenadas dos pés às cabeças e às rodas.
Veja só, minha senhora, a crueza do raciocínio do velho homem do mar. Duro de matar, mesmo.
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Anos setenta em sua segunda metade. Lupicínio das Azeitonas, menino magro, amarelo macilento, pobre feito Jó, tipo ossudo, residente e domiciliado no bairro da Olaria, desta cidade, cheirava tudo o que não devia e – o que é pior – andava numa motinha CB 400 a cento e vinte quilômetros horários, invariavelmente. É claro que ninguém sabia de onde havia saído o dinheiro para a compra do bólido infernal e caríssimo.
Um dia, ele não ia em busca de nenhum líquido precioso ou sólido benéfico que lhe servissem de alimento. Saíra de casa, também, à cata de marijuana na vizinha Cadeia Nova. Compraria, ainda, vodca da braba no bar do seu Nicanor.
Certo é que o projeto de cidadão inútil findou por cair da moto e foi parar na casa de saúde estatal, àquela época chamada hospital de base. Lascara a perna em três bandas e três pedaços e ficou internado por três meses. Teve tratamento demorado e bem feito às custas dos cidadãos muito menos inquietos – tranquilos, mesmo – que pagam impostos, mas não andam feito doidos em motocicletas compradas com o dinheiro de pequenos ou grandes crimes. Muito pior é que o sacana anda capengando até hoje, mas recebe dinheiro da previdência sem nunca ter contribuído com um tostão furado. E ainda bebe… E fica raivoso quando lhe perguntam porque ainda se mete a comprar bebida fiado… Coisa da peixada tipicamente acreana.
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É outro o cenário. Novo é o personagem. Um senhor de média idade pitava um cigarro em frente ao antigo bar do Ademar, um comerciante cearense estabelecido no Mercado do Bosque. Em suas calças rotas estilo faroeste e camisa puída de malha, o fumador tossia mais que fumava.
Numa quinta-feira melada e de céu carregado, o Ademar colocara dez grades de cerveja para dormir. (Como nos bons manuais dos cervejeiros, a bebida só seria tomada na sexta, quando estivesse bem descansada de modo a ficar muito mais gostosa).
Terminado o serviço, ainda com o pano sujo da poeira das garrafas nas mãos, ele olhou para o quase defunto e tascou:
– Um sujeito malamanhado e lascado como este deveria criar vergonha na cara e parar de fumar. Preste bem atenção. Se eu fosse o dotô Manuel, secretário de Saúde, o faria engolir o cigarro e o mandaria para o hospital. De um cabra assim, a puliça deveria exigir um plano de saúde desses que se paga por toda a vida. Daí, eu diria: fume e morra!
Segundo o raciocínio um tanto fascista do meu amigo distinto cearense, se posso garantir o meu tratamento futuro, na velhice, com o meu próprio dinheiro, que eu me dane e fume vinte carteiras de cigarros por dia. O Estado nada terá a ver com isso. Eu viverei como quiser e morrerei por minha própria conta e risco.
Dá para considerar, certamente, o ponto de vista do nosso Ademar. É pesado, caótico, mas ponderável.
É partindo de tetas tão desmesuradas e de princípios tão fortes como estes que muitos tentam analisar a quebradeira do sistema de previdência nacional. Seria um tanto desumano, sim, mas o Estado não poderia se responsabilizar pelo tratamento da saúde de quem a desperdiça entre baforadas devoradoras e goles de pinga envenenada pelos alquímicos da indústria nacional, por décadas a fio. A Dona Marisa, minha vizinha, pagadora pontual de impostos, por exemplo, não pode ser responsabilizada pela compra dos esparadrapos e pinos usados nas pernas do último herói que caiu da motocicleta fazendo malabarismos em via pública. Eu protesto!
Parafraseando mais uma vez o Ademar: quem for podre que se quebre; quem for mole que se aguente. Ou, ainda, tenho a registrar que, em vez de me contentar em ficar molhado até os ossos, eu, cá de minha parte, prefiro pressentir a chuva e correr para abrigo seguro. É mais fácil a vida quando se tenta sempre afastar os riscos. Fica tudo até bem mais barato.
*Cronista: www.claudioxapuri. blog.uol.com.br – Diretor de RH / Ufac.