Fiquei em desconforto quando um bom homem sugeriu que talvez eu devesse pedir o favor de uma quase carona a um outro cidadão; este, um obreiro laureado que, naquele tempo, se fizera muito importante através de eleições majoritárias.
Cá, na vivenda da Rua Felicidade, houvera nascido um par de filhos belos e a minha pindaíba era tamanha, e até evidente, mesmo porque, depois das vantagens e bolsas das pós-graduações, o salário quase derretera igual vela ao vento noturno.
Desde então, tenho pensado muito no que um dia me disse Montesquieu, o Barão, segundo quem, se eu faço uma amizade estilo pipoca, é como se celebro um contrato no qual me comprometo a prestar pequenos benefícios para que me retribuam com grandes favores. Descobri, pois, não ser ou jamais ter sido tão calhorda.
Enfim… Um dia, sim, lá em casa, a poeira da decadência baixou e os ventos da bonança começaram a rugir como o leão que não comeu Daniel, o da Bíblia.
De novo, a mão de Deus.
Conheci – também numa nesga do tempo sujo e amarfanhado – um sujeito que distribuía sorrisos amáveis a partir de olhos pequeninos e de uma boca em que os dentes se acotovelavam à procura de lugar. Tinha um rosto afilado, magro e mortiço, cabelos grisalhos e untuosos grudados às têmporas, olhos de tartaruga e lábios delgados e arroxeados. Ele se fez prefeito do nosso sertãozinho aquiri, colocou um primo e um cunhado – rudes e ladrões! – em posições estratégicas da tal administração e hoje está na cadeia, sozinho, meditabundo, abandonado, como um cão sarnento aos sessenta e poucos outonos frios e nebulosos.
Fiz visita ao indigitado ex-prefeito, a fim de obter dele algumas impressões acerca do que significa confiar em gente tão próxima, bem mais que meros amigos… Não me recebeu, porque, antes, ali havia estado um outro parente e, segundo o agente penitenciário, ele disse tantas palavras de lupanar, e com tanta ferocidade, que só se pode descrever como um novo talento da pornografia ou da tragicomédia nacional.
Foi por este tempo cansado de tantas guerras religiosas que também acabei visitando velhos amigos, como o Maquiavel, o Locke, o Popper, o Adorno e o Francisco Ferraz. Em conversa braba de homens de seis tempos, acabei aprendendo que há um bom bocado de restrições ao modo comum de fazer amizades. Daí até chegar lá, foi apenas um pulinho de nada. Observei que as ambições desmedidas é que dão o tom da relação com o real ou com o suposto amigo.
Em verdade vos digo, caríssima Sheila Carvalho! – que nunca foi a do Tchã. É a ambição do amigo que define muita coisa, inclusive os cargos a serem ocupados nas repartições. É a cobiça que cria as expectativas e que usa os meios ao seu alcance para chegar ao objetivo premeditado. Devo considerar que, de uma forma ou de outra, a escolha do dirigente sempre frustrará expectativas. (O amigo quer sempre mais!)
A questão é ainda mais delicada quando se considera que as pessoas que ambicionam os cargos são aliados ou amigos da liderança, aquele novo chefe talvez bem intencionado que um dia supôs está fazendo benefício.
E você – novo dirigente! – não pode esquecer o amigo, jamais. Esse esquecimento será sentido como injustiça ou como desvalorização pessoal. Pior é que a oferta de outro cargo também não apagará o desencanto que se instalou. Já era.
A tendência é tudo ir a pique porque o chefe imediato também fica numa posição melindrosa. Quanto mais disputado tenha sido o cargo para o qual foi nomeado, maior o preço que o dirigente teve que pagar junto aos aliados e amigos para nomeá-lo. Há sempre o grito dos insatisfeitos atiradores de pedras e de dardos infectados para quem o agraciado é apenas um burrico. Ele não reúne as mínimas condições de ocupar posição tão importante.
Coitado do burrico! Cercado de rivais, consciente do custo pago pelo governante para nomeá-lo, ele permanece numa posição incômoda, necessitando, periodicamente, de sinais de reconhecimento do seu valor da parte do chefe para manter-se na posição ambicionada por dezenas de outros súditos. (Muitos desses querem que o tal morra.)
Uma tábua de salvação passa a ser a busca de aplausos longe da esfera de poder de quem o nomeou, isto, para diminuir a sua insegurança. Fato é que o perseguido somente conquistará mais segurança e poder se conseguir respaldos externos que tenham o poder de influir junto à liderança. Ora, na medida em que busca reforço político fora da esfera, torna-se sujeito a todo o tipo de desconfiança.
Segundo Francisco Ferraz, professor emérito de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nomear, como qualquer gestor sabe, é um ônus político. Muitos governantes encontram enormes dificuldades para compor a sua administração em razão dos escrúpulos e bloqueios pessoais gerados pelo desejo de não se incompatibilizar com os amigos e aliados.
Enfim, esta fase acaba por retirar muito da alegria da vitória e do entusiasmo com o momento de glória fugidia. Ademais, não se deve esquecer que há sempre mais amigos junto ao governante eleito, do que junto ao que perdeu a eleição.
Pense na Universidade Federal do Acre!
Num adendo ao que disse o boníssimo Ferraz, robusto é Maquiavel, mais uma vez, ao afirmar que a nova liderança não deve reforçar o favor da nomeação com afagos financeiros, pecúnias, viagens, gratificações. Em geral, este tipo de comportamento leva o amigo a querer sempre mais. Por isto, não governe, nem gerencie para os amigos porque eles um dia, com certeza, dirão que todo o benefício concedido pelo chefe foi ainda muito pouco porque a sua ambição não tem limites. Pior é que morrerão dizendo que poderiam fazer muito mais aquilo que não sabem, mas o destino e a incongruência o atrapalharam.
Os amigos da ambição hão de sempre concordar com o chefe, mesmo que no seu interior discordem. Eles têm sempre os seus projetos pessoais que, na maioria das vezes, seguem rotas diferentes, quando não opostas aos da organização. Eles sempre exigirão uma quota extra de tolerância com erros; e isto o dirigente não teria se as pessoas tivessem sido escolhidas em função da qualificação pessoal.
Finalmente, aquele que por ventura vier a exercer a alta função – o indivíduo que deve a sua nomeação aos laços de amizade pipoca – não se sente agradecido pelo ato. O chefe fez o que devia fazer, segundo ele. A satisfação inicial é logo substituí-da por sentimentos negativos que, pouco a pouco, vão crescendo junto ao fígado e à bílis. O favor que o dirigente lhe fez torna-se opressivo. A autoestima fica atingida: você o nomeou porque ele é um amigo, não porque você achava que ele merecia por seus méritos próprios. Ferraz chama este fator de a rota da ingratidão.
Então, a relação entre o líder e o dono da ambição vai se tornando mais distante, desconfianças são frequentes e, quanto mais consideração o dirigente tiver com ele, quanto mais gestos de amizade fizer, menos gratidão e reconhecimento receberá. É paradoxal, mas é real.
Ferraz empresta-nos um aconselhamento supimpa segundo o qual o dirigente não tem tantos amigos quanto imagina, nem eles são tão fiéis. Por isto, é conveniente governar com os mais capazes, sejam amigos ou não, e não se perturbe com a insatisfação dos chegados. Guarde-os para as situações de amizade pessoal e governe com os competentes.
Aí, então, arranhando a realidade com os cacos do meu cantil seco torrado de tanta sede, passo a ver lá no horizonte das relações estilo pipoca que, por mais que o encanto da novidade se oponha aos velhos hábitos, sempre algo nos impedirá igualmente de ver os defeitos dos nossos chegados. O novato pode até ser bom, mas o velho amigo cheio de vícios tem uma palmadinha nas costas que encanta, e todos sabem que ele jamais conseguirá fazer aquilo que nunca aprendeu.
Grande sacada!
*Santo de casa que não obra milagre: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br.