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A ciência e o conhecimento tradicional

Judson Ferreira Valentim1
Moacir Haverroth2

O Dia do Índio parece um momento apropriado para refletirmos sobre a importância e o papel dos povos indígenas e tradicionais no presente e futuro. Isso é particularmente importante na Amazônia Legal, onde residem 56% de toda a população indígena brasileira, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O conhecimento científico e o conhecimento tradicional ligado às diferentes culturas não são excludentes. Cada um deles tem sua importância e pode dialogar a fim de encontrar caminhos para a solução de problemas e melhoria de vida da população.

A ciência tem um papel crucial para ajudar a encontrar respostas aos desafios do desenvolvimento sustentável. O conhecimento científico e as tecnologias apropriadas são essenciais para resolver os problemas econômicos, sociais e ambientais que tornam o atual processo de desenvolvimento insustentável.

Entretanto, a ciência não é o único caminho para geração de conhecimento. Há necessidade de maior interação com outras formas e sistemas de conhecimento para gerar respostas adequadas a todos os desafios do desenvolvimento sustentável. Isso é particularmente importante na busca de soluções para problemas locais como o manejo do solo, da floresta e sua biodiversidade e a gestão dos recursos hídricos.

Os povos tradicionais e indígenas desenvolveram e refinaram sistemas próprios de conhecimento relacionados a domínios tão amplos como a astronomia, meteorologia, geologia, botânica, agricultura, fisiologia, psicologia e saúde. Esses sistemas de conhecimento são um capital formidável. Eles representam formas de aquisição e construção de conhecimentos e preservam informações muitas vezes desconhecidas pela ciência acadêmica, além de refletir outras relações entre a sociedade e a natureza.

Diversas espécies atualmente cultivadas no mundo inteiro e que garantem boa parte da alimentação da população foram domesticadas e diversificadas pelos povos indígenas das Américas, tais como milho, batata, mandioca, amendoim, abacaxi, açaí, cacau, castanha-do-brasil, cupuaçu, variedades de taioba e cará, entre outras, muitas das quais carregam, até hoje, os nomes de origem indígena. Além disso, são de origem indígena o conhecimento e o uso de diversas substâncias de ação fisiológica utilizadas, atualmente, na produção de medicamentos. Há, ainda, uma série de substâncias e bebidas de uso ritual ou religioso que tem sua origem no conhecimento dos povos indígenas ancestrais e atuais.

É com essa percepção que a Embrapa, em conjunto com diversas outras instituições do governo do Acre, Governo Federal, organizações não governamentais e comunidades indígenas, vem desenvolvendo projetos de pesquisa que buscam integrar o conhecimento tradicional e a ciência.

Desde 2008, a Embrapa Acre tem trabalhado com projetos participativos de pesquisa e desenvolvimento comunitário, inicialmente entre os Kulina (Madijá) de três Terras Indígenas e, mais recentemente, entre os Kaxinawá (Huni Kuin) da Terra Indígena Kaxinawá de Nova Olinda, ambas localizadas no Alto Rio Envira, em Feijó, AC.

Entre os Kulina, foram registrados conhecimentos relacionados ao uso de mais de 200 espé-cies vegetais para fins terapêuticos, dentro do contexto cultural do grupo, e 30 espécies cultivadas em roçados para fins alimentares e usos diversos, além de outras no entorno das moradias. Foi incentivado, por meio de metodologia apropriada, o cultivo de várias espécies frutíferas, obedecendo ao modo de vida e ambiente locais. O povo Kulina demonstra rico conhecimento do seu ambiente e mantém modos de vida que conservam a floresta, mesmo diante das adversidades que enfrentam.

Na Terra Indígena Kaxinawá de Nova Olinda, a experiência foi ampliada para diversas atividades de pesquisa e desenvolvimento comunitário, visando à segurança e diversificação alimentar nas aldeias. Assim, pesquisadores e indígenas estão desenvolvendo atividades de caracterização e mapeamento do solo e da vegetação, criação de abelhas nativas sem ferrão, fruticultura, diagnóstico e controle de pragas e doenças das principais espécies cultivadas, levantamento de variedades locais de mandioca e construção de casas de farinha, análise físico-química das farinhas produzidas na aldeia e estudo etnobotânico de plantas medicinais e rituais. Todo esse trabalho é realizado em articulação com outros projetos de responsabilidade do Governo do Estado e tendo sempre, como base, o Plano de Gestão da Terra Indígena, que é um mecanismo pelo qual os próprios indígenas planejam como cuidar e manejar a sua terra visando à conservação ambiental, à garantia da sobrevivência digna da geração atual e das futuras e respeitando os preceitos culturais.

Os esforços de integração entre a ciência e o conhecimento tradicional devem ser ampliados, pois, certamente, nos possibilitarão assegurar ao futuro um legado robusto de uso sustentável e conservação dos recursos naturais na Amazônia.

(Footnotes)
1Engenheiro-agrônomo, Ph.D. em Agronomia, pesquisador da Embrapa Acre,
judson.valentim@embrapa.br

2Biólogo, M.Sc. em Antropologia Social, D.Sc. em Saúde  Pública, pesquisador da Embrapa Acre, moacir.haverroth@em- brapa.br

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