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Por do sol em Dublin

 Quando Pavla-Gwineth rememorou os acontecimentos da sua vida, aquelas noites de um tempo anterior na sala televisiva, foram algumas das lembranças mais claras. Ela reviu a luz ardente no rosto de casca de ovo do irmão Liam e chegou até a provar o sabor humano das suas palavras. O curso da sobrevivência do rapaz foi relatado aos bocadinhos, como se ele recortasse de si cada pedaço e o oferecesse numa bandeja. Quantas lágrimas.

 Liam, o irmão mais velho, ainda remoia as dores da perda do ente querido mais próximo, aquela que lhes deu à luz de um dia de Deus. A menina chorava baixinho, mas copiosamente, considerando-se ainda não contar as catorze voltas completas ao redor do sol. Tristes… Era aquele um outono ainda mais cinza de um ano que já se foi há quatro, hoje.

 Para a menina que respirava sonhos e utopias bem próprias da era juvenil, o verão do ano seguinte foi bem simples, não fosse a desagradável companhia da saudade cortante. A estação compusera-se de quatro elementos diferentes, além da falta da mãe: dar de ombros às ocorrências mais recentes e sufocar as dores da perda, ler no chão da história as saídas para problema tão drástico, agarrar-se aos estudos na ânsia de livrar-se da tormenta e evoluir por si só, e, enfim, arranjar um coração amigo, uma espécie de protetor, talvez um bem querer, um afeto, um amor que lhe pudesse enxugar lágrimas tão densas, tão abundantes… E ela pensava mil vezes ao dia: era preciso seguir em frente, sem recuar, mas lutando sempre e seguindo a música da vida ainda imatura demais.

 O tempo passou devagar e, bem depois dos acontecimentos melancólicos, eis que um poeta magro vindo de terra distante lhe apareceu na vidinha pacata, mas borbulhante e cheia de sonhos de verão e projetos de vida bem delineados, focados mesmo.

 Da forma como a menina queria, apareceu-lhe de repente, não mais que de repente, como saído de um conto de verão, o desejado tutor das suas coisas do coração arfante sob seios túrgidos. Vinha, é claro, sem muitas pausas nos versos acalorados e sufocantes. Explicações sobre a distância entre o sol e marte ou entre o coração e o cérebro vinham aos borbotões. De meia idade, eloquente, deixava-se parecer a ela um sábio, inclusive, das artes do amor a dois com cumplicidade, carinho, afeição, compreensão e todas essas coisas bem próprias dos relacionamentos em primeira instância.

 Aquele era o verão dos sonhos dela. Do aniversário enternecedor, a participação dele ocorreu com poesias circunstanciadas. A seguir, foi a vez do dia dos namorados. Muitos sonhos povoavam a cabeça de Pavla-Gwineth, agora com o amparo do amante apelidado Protetor Solar.

 – De forma alguma eu gostaria de me sentir comprada. Já tentaram fazê-lo uma vez e eu não gostei. – Foram estas as palavras da menina ao receber os mimos da ocasião.
 
 – O momento exige que o presente que lhe dou signifique que a minha presença na sua vida deve ser significativa. – Estas as palavras do poeta magro, o novo tutor das coisas do coração juvenil da menina que ainda não estava completamente apaixonada, como ela própria fazia questão de deixar muito claro.

 À tardinha e mais tarde da noite, ancorava em frente à residência da menina, em Dublin City Center, um carrão Jaguar azul turquesa.

 – Gwineth, saiba que eu gosto muito das viagens pelas montanhas e pelas pequenas cidades do interior da Irlanda. Glenageary, Donaghmede e Howth são muito aconchegantes. O ar faz bem a qualquer pulmão. O vinho é uma delícia e o queijo, supimpa.

 – Eu gosto muito do campo, também. Poderíamos aproveitar um fim de semana. O que tu achas, ó meu Protetor Solar?

 O romance deslanchara e corria na velocidade do vento primaveril. Flores, jóias, passeios, promessas de amor eterno, do tipo até que a morte os separe.

 – Como eu sou bem mais jovem, cuidarei de você quando a sua idade avançar. Eu te amo. – Dizia ela. Ao que ele respondia:

 – Eu, como bem mais velho, cuidarei para que você cresça intelectualmente, evolua, seja uma mulher plena, faça um bom curso de Direito, na Dublin University, tenha uma vida futura melhor que a sua adolescência em lágrimas.

 Naquele tempo, o Opera de Dublin apresentava uma récita eclética em homenagem a Herbert Von Karajan, o maestro da moderna música clássica austríaca. Foram os dois. Depois assistiram Hamlet, de Shakespeare, no Gayet Theatre.  Ela falava muito da música internacional. Tivera um professor de Artes, de nome Claudius Portinni, de origem latina, que lhe apresentara os clássicos, de Bach e Beethoven a Zubin Mehta, Andrea Bocelli e Sérgio Mendes. Passaram a ter uma grande admiração pela música do Brasil. No carro, ouviam Caetano Veloso, Djavan, Gal Costa, Chico Buarque, Paula Toler, Marisa Monte, dentre outros.

 Ontem ao luar / Nós dois em plena solidão / Tu me perguntaste / O que era dor de uma paixão / Nada respondi …

 A primavera, então, era uma profusão de festivais de música na Irlanda. Foram à apresentação de Loraine Balen Tatto, uma pianista brasileira expert em Tom Jobim, no Aviva Stadium. Pavla, já aos dezoito, ria pelos belos olhos felizes de quem nunca o havia sido.

 Numa manhã de junho, foram ao gramado do Trinity College. Lá, apresentara-se a National Orchestra, regida pelo clássico Seamus Ennis, seguida de uma banda de roque, The Planxty.

 – Nunca fui tão feliz. Pelo menos não tenho a lembrança.
 
 – Eu, cá de minha parte, tenho vivido dias muito coloridos, alegres, luminosos. A sua companhia, Pavla-Gwineth, parece me remoçar uma ou duas décadas. É mesmo um milagre o convívio com os mais jovens, principalmente, quando se pode ter ao lado a inteligência privilegiada de alguém, como você, que me tem preenchido lacunas interessantes entre os amores que nunca tive e agora o tenho.

 O poeta magro declamava o que compunha em homenagem à amada, mas também lia em voz alta um livro que por ela lhe fora presenteado, do brasileiro Vinícius de Moraes:

 Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva obscura e desvairada não se souber achar a bem-amada – para viver um grande amor.

 As estações quentes, se é que assim se pode dizer, foram embora e, com elas, também houve por bem ir-se a alegria do amor a dois. O outono chegara mais cedo, depois de uma discussão acerca da forma como conseguiriam viver sob o mesmo teto. O inverno das relações logo se abateu em meio a discussões infundadas, mínimas, sobre um futuro que seria bem promissor, com certeza. Alguns investimentos anteriores  –  dele  –  adiavam a compra de um pequeno apartamento na Grafton Street, por uns quatro meses, ou um pouco mais. A pressa juvenil tornou-se estressante para ela, que pouco buscava entender ou nada entendeu porque não quis até hoje. Havia urgência no coração aos saltos. O rio da vida corria em velocidade vertiginosa. Ele não conseguia dizer muita coisa porque sequer ela o permitia. Planos de vida anteriores seriam desfeitos para o bem do romance. O Protetor Solar fazia uso dos argumentos mais substanciosos possíveis. Discussões acaloradas se sucediam. Dedos em riste, agora. Debates sobre o relacionamento deixavam vazar palavras em tom maior no pub próximo à residência dela, na James Joyce Square. Ela desacreditava porque não queria com-preender muita coisa além do amor em doses pesadas que sentia pelo poeta magro. De mal a pior.

 O mundo agora estava vestido de um branco intenso, triste. Pesados flocos de neve caíam ao meio dia. Dezesseis graus negativos. O sonho durara toda a manhã, desde que nele surgiu o poeta magro. Acordara suada, apesar das neves da Irlanda. Pensou no amante saudoso em terra remota. Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto de anjo malvado.

 Ela se achegou ao recosto da poltrona, ajeitou a almofada laranja sob a cabeça, puxou sobre si a manta de pele de cervo, passou os olhos pelos escritos do poeta magro e dali tirou uma fotografia imaginária de si própria, da sua vida exigente, ranzinza. Lá estava escrito que, por mais inteligente que alguém possa ser, se não for humilde, o seu melhor se perde.
 
 Então, a ninfa se virou de lado e adormeceu, mais uma vez, na longa vida, para o amanhecer de um outro dia cheio de grandes venturas, na graça de Deus.

 Era inverno em Dublin, onde até os amores hibernam… Ou morrem de frio.

*José Cláudio Mota Porfiro é um cronista desatrelado:  www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

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