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Inventário florestal, o elo fraco dos planos de exploração madeireira na Amazônia (I)

 A adoção da exploração madeireira mediante o uso de planos de manejo foi um avanço inegável para o setor madeireiro da Amazônia. Se por um lado ele confere legalidade para a atividade, pois requer a chancela dos órgãos ambientais e permite a fiscalização e monitoramento da atividade, por outro ele confere um nível de sustentabilidade à exploração florestal que não existia quando a mesma era baseada no corte raso ou exploração não planejada da floresta. É importante ressaltar que na atualidade, o termo ‘plano de manejo’ refere-se tanto à técnica de exploração florestal como ao documento físico que contém de forma sistematizada os passos necessários para o licen-ciamento da exploração de madeira de uma determinada área florestal que tramita nos órgãos de licenciamento ambiental.

 Vários fatores levaram ao desenvolvimento das técnicas de exploração manejada de madeira em florestas tropicais. Sob o ponto de vista mercadológico, o mais importante deles foi a virtual exaustão do potencial madeireiro das florestas nativas asiáticas. Esta região, que se constitui no maior mercado de madeira tropical do planeta, também domina as técnicas mais modernas de processamento deste produto. A combinação desses fatores, associada à intensiva exploração de espécies madeireiras levou ao empobrecimento de vastas áreas florestais da região e, em alguns casos, fez com que países exportadores passassem à categoria de importadores de madeira tropical. A busca pela exploração racional da madeira foi, portanto, um passo inevitável.

 Sob o ponto de vista ecológico, a necessidade de intervir de forma cuidadosa nas florestas tropicais decorre do fato das mesmas, que cobrem apenas 7% da área terrestre do planeta, abrigarem mais de 50% das espécies vivas. Além disso, a quantificação e a valoração financeira dos recursos genéticos representados pelas florestas tropicais ainda não foi feita porque, apesar dos esforços exaustivos de taxonomistas botânicos, o valor e a variedade de espécies contidas na floresta ainda são desconhecidos ou apenas parcialmente compreendidos.  

 Nesse contexto, a excessiva variedade de espécies nativas com potencial madeireiro tem comprometido a retidão dos planos de exploração madeireira executados, em execução ou planejados para toda a Amazônia. Vamos explicar.

 Para a exploração florestal de espécies madeireiras de uma dada área, alguns passos são indispensáveis para a aprovação do plano de manejo. Um deles é a realização do inventário florestal das espécies a serem exploradas. No caso da Amazônia, este inventário consiste na identificação e medição de 100% de todas as espécies arbóreas com diâmetro mínimo de corte (DMC) igual ou superior a 50 cm (para as espécies cujo DMC não tenha sido previamente definido). Árvores com diâmetro inferior também são contabilizadas e mensuradas tendo em vista futuras explorações na mesma área, no que se convencionou chamar ‘próximo ciclo de corte’, que poderá ser feito, dentro de 25 ou mais anos.

 O responsável técnico pelo inventário florestal é um engenheiro florestal. Mas isso não significa que ele, necessariamente, irá ao campo realizar pessoalmente o inventário. Muito menos que ele é capaz de identificar cientificamente todas as árvores inventariadas. Excluindo-se as espécies mais exploradas na região, como o cedro, ipê, cumaru-ferro, cumaru-cetim e mais uma dezena de outras espécies, a identificação de todas as espécies em um inventário de exploração madeireira, que pode chegar a mais de 60, é um trabalho que poucas pessoas na região podem realizar com um mínimo de confiabilidade científica.

 Para dar o nome científico a uma árvore, é preciso saber a família botânica, gênero e espécie da mesma. Especialistas em botânica, os taxonomistas, são capazes de identificar se tiverem amostras das folhas, flores e frutos. Esses especialistas botânicos são, na atualidade, poucos e muitas vezes conhecem apenas um grupo de plantas, como, por exemplo, uma família. Pelo que sabemos raramente um deles é contratado ou consultado para ajudar na realização de inventários florestais para exploração madeireira. Também sabemos que dos inventários florestais realizados, a maioria esmagadora não coleta amostras botânicas para a correta identificação das espécies encontradas.

 Com essas limitações para a identificação da maioria das árvores da floresta amazônica, como explicar a abundância de planos de manejo em execução na região?

 Do que sei, os inventários florestais incluídos nos planos de manejo de exploração madeireira aprovados pelas instituições licenciadoras são realizados, por razões de ordem financeira, de forma muito expedita. Na maioria das vezes o que dita a realização dos mesmos é a rapidez e baixo custo da equipe que realiza o inventário. Em resumo, ele é feito da seguinte forma. No campo, depois de demarcados os futuros talhões de exploração e abertas as picadas na floresta, uma equipe formada por um plaqueteador, um identificador botânico (mateiro) e um anotador realiza o inventário. O plaqueteador limpa em volta da árvore, mede o diâmetro e fixa uma placa numérica. O mateiro vem a seguir e identifica a árvore plaqueteada com nome popular, estima sua altura total e comercial e classifica a qualidade do seu fuste. O anotador, ou ‘prancheteiro’, anota as informações em uma tabela que no final é repassada ao engenheiro florestal responsável pelo inventário.

 No escritório, e se valendo de recursos disponíveis na internet ou de uns poucos livros especializados, mas sem acesso e consulta a fotos ou amostras botânicas das árvores identificadas pelo mateiro, o engenheiro florestal tem que ‘dar’ o nome científico às árvores. No caso das espé-cies mais comuns não existem maiores problemas. O desafio é dar nomes para espécies problemáticas, conhecidas por diversos nomes populares e pertencentes a famílias e gêneros botânicos ainda não conhecidos perfeitamente. No meio botânico, essas espécies são conhecidas como ‘complexos’ e o melhor exemplo são as espécies popularmente conhecidas como ‘angelim’, que são tão numerosos e diversos na Amazônia que até um livro foi publicado para tentar ‘passar a limpo’ a confusão que reina sobre a sua correta identificação.

 Portanto, um erro de identificação botânica pode ter várias consequências que vão da exploração equivocada de uma espécie, da exploração de duas espécies identificadas como apenas uma no inventário, fato que pode ameaçar de extinção uma delas. Enfim, são numerosas as situações decorrentes dos equívocos de identificação em inventários florestais. E na maioria das vezes os equívocos podem decorrer da incompetência do mateiro que identificou erroneamente no campo e do engenheiro que fez a opção pelo nome científico errado no escritório. Além disso, em casos de inventários florestais realizados por terceirizados a serviço de empresas que irão ‘comprar’ o plano de manejo em processo de elaboração, algumas vezes o ‘erro’ de identificação é proposital, pois atende os interesses dos compradores.  

 Na próxima parte desse artigo, abordaremos com mais profundidade as consequências dos erros cometidos durante os inventários florestais e o risco que isso representa para o futuro da exploração madeireira na região.

*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do INPA/Parque Zoobotânico da UFAC.I

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