O problema dos inventários florestais que integram os planos de manejo madeireiro realizados no Acre reside na deficiência técnica e científica de mateiros e engenheiros florestais em identificar corretamente as espécies que serão exploradas. Para complicar a situação, os técnicos responsáveis pela fiscalização desses planos de manejo também se ressentem dessas deficiências, com um agravante. Na maioria das vezes eles são obrigados a identificar as espécies tendo como único elemento de estudo as toras armazenadas em esplandas nas áreas de exploração, pátios de serrarias ou carrocerias de caminhões toreiros. Uma missão quase impossível.
Como resolver esse problema? Você leitor deve ter respondido: treinar as pessoas envolvidas para realizar identificações mais precisas. Também concordo com essa sugestão e acho que participar desses treinamentos de forma recorrente deveria ser requisito indispensável para esses profissionais.
Entretanto, mesmo a realização desses treinamentos não seria suficiente para sanar as deficiências citadas acima. Ocorre que a identificação prática, direta das plantas no campo, não é algo que se aprende totalmente em bancos de escolas. É, em alguns casos, uma habilidade natural que poucas pessoas possuem. Da mesma forma que algumas tocam vio-lão ou jogam futebol melhor que outras. Não tem escola que resolva a falta de habilidade natural das pessoas para realizar certas atividades.
No caso dos engenheiros florestais responsáveis pelos planos de manejo, não espero que qualquer um deles venha a se tornar um especialista em identificação de árvores na floresta. Suas atribuições técnicas relativas aos diversos ramos das ciências florestais são tão amplas e preenchem seu tempo de tal forma que a dedicação a esse ramo se torna de certa forma desvantajosa sob o ponto de vista econômico, tendo em vista que ele teria que, literalmente, viver na floresta.
Os técnicos envolvidos na fiscalização da exploração madeireira, mais que os engenheiros florestais que elaboram os planos de manejo, devem se dedicar ao máximo para melhorar sua condição técnica de identificação das espécies madeireiras exploradas no Acre. Mas isso não depende só deles. As instituições para as quais eles prestam serviço deveriam instituir programas de treinamento permanente. Considerando que eles fazem visitas freqüentes ao campo, a elevação do nível de conhecimento de alguns deles será apenas uma questão de tempo.
No que concerne aos mateiros, podemos afirmar que apesar de no Acre existirem muito mateiros trabalhando em inventários florestais, poucos merecem tal título. Atuo no ramo da botânica há cerca de 20 anos e afirmo, sem medo de errar, que atualmente existem no Acre apenas dois mateiros capazes de realizar identificação de plantas na floresta com altas possibilidades de acertos: Edilson Consuelo de Oliveira e Antonio José Barreto (foto). O conhecimento desses mateiros é resultado de uma habilidade natural, das numerosas excursões de campo que fizeram em conjunto com grandes especialistas botânicos, e do tempo despendido em herbários, consultando amostras botânicas. São capazes de identificar famílias botânicas, gêneros e em muitos casos espécies. Também são exímios escaladores que sobem nas árvores mais altas da floresta em busca das folhas, flores e frutos indispensáveis para a correta identificação das plantas. Formar pessoas como essas leva muitos anos. Por isso, o correto é se referir a elas como ‘identifica-dores botânicos práticos’.
Um exemplo do alto custo que um mateiro com pouco conhecimento pode causar: durante a elaboração do inventário florestal do plano de manejo da Fazenda São Jorge, nas cercanias de Sena Madureira, o proprietário contratou um mateiro de outro estado para fazer o trabalho no campo. Este mateiro identificou a conhecida samaúma (Ceiba pentandra), uma das espécies nativas de maior valor comercial e de excepcional aproveitamento para a produção de laminados, como paineira (Ceiba lupuna), uma espécie sem qualquer valor comercial. Por conta disso, o plano de manejo foi aprovado e a samaúma não entrou na lista das espécies exploradas. Depois que se descobriu o equívoco, pessoas envolvidas no empreendimento estimaram que o prejuízo causado por esse ‘erro’ do mateiro foi de mais de R$ 100 mil.
E porque as empresas e os profissionais que elaboram planos de manejo no Acre não contratam os melhores identificadores botânicos? Por razões econômicas. Qualquer mateiro, desses que com certeza não se perdem na mata e conhecem uma ou outra árvore na floresta apenas por seu nome popular, custam por volta de R$ 80 por dia. Os melhores não custam menos de R$ 200 por dia.
Alguns podem achar que estou exagerando, mas a forma como são feitos os inventários florestais para a exploração madeireira no Acre coloca em risco de ilegalidade a maioria esmagadora dos planos de manejo realizados, em realização ou planejados em todo o Estado. Afinal, o inventário florestal é a base de qualquer plano de manejo: seleção das espécies a serem exploradas, das árvores porta-sementes, das estimativas de produtividade, de regeneração para explorações futuras. Da forma como tem sido realizado, com base em inventários florestais irreais, os planos de manejo para exploração madeireira são inválidos porque não há garantia de que irão diminuir os impactos negativos sobre a floresta, que no lugar de saudáveis e produtivas, correm o risco de se tornarem degradadas.
Apenas para ilustrar a irracionalidade que grassava no setor. Há cerca de cinco anos recebi um empresário da Ponta do Abunã-RO que buscava resolver um problema relativamente simples: ele queria transportar uma grande quantidade de toras de amarelão cujo nome científico correto é Aspidosperma vargasii, da família botânica Apocynaceae. Ocorre que no sistema do Ibama que emitia eletronicamente a autorização para o transporte da madeira, o nome científico e a família botânica relativa ao nome popular da árvore amarelão era outro. Ele não teve outra alternativa e emitiu o documento usando um nome científico errado.
Existe solução para esses problemas? Sim. E algumas deveriam ocorrer na legislação que regula a exploração florestal: exigir, durante o inventário florestal, a coleta de amostras botânicas das espécies identi-ficadas e que serão exploradas; certificar os mateiros, responsáveis pela identificação inicial das árvores na floresta; exigir a citação das referências bibliográficas regionais usadas na identificação das árvores.
Sem essas mudanças, o setor corre o risco de ser paralisado por uma ação do Ministério Público. Se o MP estiver devidamente assessorado e resolver ‘passar o pente fino’ nos planos de manejo de exploração madeireira realizados no Acre e na Amazônia, a atividade corre o risco de ser paralisada até a regularização dos problemas que serão encontrados. Vai ser um escândalo nacional, com potencial de atingir proporções internacionais, tendo como únicos prejudicados os produtores e empresários envolvidos na atividade.
* Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa/Parque Zoobotânico da Ufac.