Um homem de vasta experiência um dia me disse que as tartarugas conhecem as estradas melhor que os coelhos. É como hoje me sinto ao tirar desta alma insana a pressa ao volante dos tempos de espadachim. Por fazer já parte da paisagem, agora, aprecio tudo com mais calma, com mais cuidado, com mais carinho, notadamente essas ancas largas e balouçantes que teimam em passar todos os dias diante dos meus olhos ávidos. Parece coisa feita… E é, de fato, obra de Deus tanta formosura! Ah, Helena, por ti os meus sinos dobram, a poesia flui e a alma se encanta.
Mas tudo é muito e é pouco por ser amor platônico. Essas são coisas próprias dos poetas que estão a atravessar a média idade. Pensam todos como penso eu. Observam, claramente, que a esta altura da vida nada é tão útil ao homem como a resolução de não se apressar. A pressa e a perfeição já não andam às turras, porque para nós ficou nítido por demais que o apressado realmente come cru.
Havia, então, naquele lugarejo monótono, um senhor de alta idade, de respeitáveis cabelos grisalhos, posto não ser nenhum canalha. Diziam-no bem feliz em suas roupas ultrapassadas e ao lado de esposa bem ou muito mais nova e amada. Coisa de trinta e poucos anos a menos ou a mais. Não importava. Monotonia se faz remédio e diapasão para quem vive o mundo que Deus dá porque é de graça, sem maiores problemas ou justificativas meramente plausíveis.
Criava pássaros soltos em um quintal imenso, um sítio, na verdade. Havia muitas fruteiras de todas as estações e, por isto, a passarada ficava sempre por ali, se alimentando de uma forma muito mais fácil, do jeito que eles gostam.
Curioso é que os cachos de banana eram retirados ainda quando não estavam exatamente maduros e iam para debaixo de densas camadas de folhas e de uma lona verde muito gasta pelo uso. O mesmo acontecia com os mamões, as graviolas, as cajaranas, os pequis, dentre outros.
Na primeiríssima hora do dia, o homem dos pássaros seguia para um banco alto e comprido, como uma bancada, lá longe, no meio da pro-priedade, onde cortava as frutas em pequenos pedaços e os ia deixando ali enquanto caminhava devagarzinho para a outra extremidade de onde voltava refazendo, mais uma vez, o que chamava de uma oração aos pássaros mortos. A confusão era imensa e o alimento se ia acabando enquanto mais comida era posta à mesa farta, isto, por uns quinze minutos, ao fim dos quais vinha a vez dos bichos maiores a quem era servido capim moído, macaxeira, jerimum, batata, folhas de taioba, milho e mais-não-sei-o-quê.
E aquela rotina foi feita e refeita todos os dias talvez através de séculos, como muito bem quer o santo de Assis, Francisco, o protetor dos pássaros.
As noites se iam passando, paulatinamente, com a lentidão de uma chuva da madrugadinha que se estende pelo dia afora. Nas manhãs cinzentas ou ensolaradas, ela cantarolava umas modinhas muito antigas e bastante compassadas, lentas mesmo, melancólicas até. Ao cair da tarde, iniciava por assobiar boleros de Ravel e passagens da ópera Aída, de Verdi, além dO coro dos escravos hebreus, de Nabucco, ou As quatro estações, de Vivaldi, as sinfonias de Beethoven, e outras tantas que a cultura clássica o permitia.
Mais tarde, ele soprava um saxofone barítono sinuoso e lânguido e tênue e quase apaixonado em semi tom. Eram canções de um tempo antigo, quando o Catulo da Paixão Cearense tirava notas de uma rebeca feita a partir de golpes de canivete:
Não há, ó gente, oh não
Luar como este do sertão…
Oh, que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão
Esse luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão…
Não existia televisão, mas também filhos não havia ali ainda sido fabricados, apesar das tentativas vãs e das desistências ao longo dos últimos séculos de solidão a dois.
Tempos depois, então, já passaram a viver o incesto que significa a vida de casado há tanto tempo, quando a esposa e o esposo desaquecem a chama da libido e passam a tratar-se como compreensivos irmãos siameses assexuados.
Na soleira da janela da casa de alvenaria antiga, eles se revezavam enquanto não era o dia de receber os pecúlios da aposentadoria herdada de uma guerra de outros tempos.
Jamais houveram por bem apressar-se. Não era necessário. Não mais eram o presente e agora passaram a ser, já, o seu próprio futuro. Haviam chegado lá, com muita calma em qualquer circunstância.
No entanto, solução imaginável começou a desenhar-se. Uma criança que já não desse tanto trabalho ou não mais fosse um bebê poderia fazer algum barulho na vivenda soturna.
Foi então adotado um garoto já aos 9 anos. Logo se revelara de boa índole. Era estudioso, afável e compreensivo. Os cuidados eram extremos em vista e considerada a alta idade dos pais adotivos.
E o tempo se foi um tanto mais rápido. A presença da criança houvera feito um grande bem ao casal. Eram felizes conforme haviam planejado com calma.
Todavia, nuvens de mal agouro mancharam o céu da vivenda. Ela morreu primeiro, às sessenta e uma voltas, de um mal súbito que lhe assolou o fígado. A tristeza se abateu por sobre ele que, já bastante alquebrado, entregou a alma a Deus aos noventa e seis anos, num dia de domingo chuvoso, pela manhãzinha. Simplesmente como uma vela, anoiteceu o dia anterior com a luz que pela manhã houvera se apagado.
O bom menino se viu em meio a um turbilhão existencial com apenas 21 anos. Tudo ficara nebuloso. A cabeça do moço passara a andar por caminhos nunca d’antes trilhados. Descobriu a si mesmo com pouco tino para administrar os bens deixados pelos pais. Apressou-se demais, então. Não havia a herança genética de estar bem por estar, como os desaparecidos.
Foi por esse tempo que apareceu um desses empreendedores da indústria imobiliária. A grande chácara foi vendida a preço considerável. O moço não via como tornar útil tamanho pedaço de terra já bem próxima ao Centro da cidade, que crescera com a descoberta de uma bauxita qualquer. Quatro torres de dezesseis andares de um grande condomínio passaram a compor a nova paisagem do lugar antes tão pacato.
Vieram um ou 2 ou 3 casamentos mesmo antes das 30 voltas. Apareceram crianças louras que talvez até nem fossem sangue do seu sangue. Pensões alimentícias passaram a corroer o erário que lhe deixara os pais.
Agora, não mais casaria. De forma alguma. Viveria como um solteirão à baila com um chamego hoje e outro amanhã. Pouco gasto com namoradas em festas frugais era o objetivo maior. Todavia, o plano não deu tão certo em vista das farras que promovia quando as paixões semanais exorbitavam por uma ou outra diva que pululavam sobre a sua alcova.
Foi assim que o dinheiro foi escorrendo, paulatinamente, sem um adesivo que estancasse a sangria. As moças se foram da sua vida. A grande maioria dos amigos também.
A próxima ideia genial foi comprar um terreno na periferia. Foi o que fez. Lá ergueu uma casa de alguns cômodos em cuja parte de entrada foi montado pequeno comércio onde era vendido de tudo um pouco, inclusive as alcoólicas.
As dívidas só aumentavam. A pressa se tornara aperreio, ansiedade louca. A paz se fora para nunca mais voltar. Apressava-se por tudo. Nem de longe lembrava a bonança e a calma dos pais. As raivas surgiam do nada, principalmente, do fato de não mais ter dinheiro. Tornara-se um fleumático nervoso com tudo e com todos. Solitário agora, passara, enfim, a fazer parte do clube dos homens acima das sete arrobas, ainda aos trinta e oito anos.
Um dia, então, na cidade, depois de haver subido penosamente dois lances da escada de um banco onde lhe haviam negado já cinco empréstimos, o cansaço final se abateu sobre o homem. Fardo pesado de cima da escadaria gigante e íngreme foi carregado já morto. Eu o dissera que aqueles ataques apopléticos poderiam render-lhe um fim lastimável, como todos, mas fora de hora ou antes do tempo que lhe reservara o Deus de bondade.
Hoje, ao lembrar os tempos remotos em que os fatos acima ocorreram, vem a mim certeza líquida e certa. Por isto, assevero-vos, irmãs, que morrer é necessário, sim. A idade nos danifica as feições. Não estamos aqui para semente. Todavia, pensando bem, difícil é conviver com os que querem apressar a hora final ou a demência em média idade ou aos trinta e poucos anos.
Paciência, irmão! A vida é mesmo assim.
*José Cláudio Mota Porfiro é um cronista desatrelado: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br