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Sua bênção, Vinícius de Moraes!

Meu amado poetinha! Como bem recomendado por todos os santos e orixás, também tenho eu chegado lá, aqui ou acolá, sempre e a mercê dos melhores presságios, a cada instante, mesmo sem tanta pressa, mas com alguma parca poesia, pertinácia e teimosia, além de me fazer digno de haver sido confiado à divina providência.

Segundo ela própria pensa, a natureza, sou poeta sem arrimo e sem berço rico, mas virtuoso o suficiente de forma a crescer e a prosperar nas boas e nas más fases. Diz ela ainda, a arte:
– Ele é como todo bom brasileiro, que gosta porque gosta e está acostumado aos vaivéns diuturnos e ao felino voraz diário que deve ser morto à unha, ainda manhãzinha, nem que para que isto ocorra tenha, antes, que ir ver as tripas do ecologista do terceiro milênio que já não come as onças magras e muito menos as gordas… Também, não sabe o que é passar fome!

Um pouco da arte que se derramou copiosa em ti, meu bom Vinícius de Moraes, também em mim houve por bem cair tal e qual um leve borrifar, como se fosse o orvalho que desce do céu madrugada adentro. Sim, a mera poesia deste bardo amazônico é meio pornografia, quase escorregadia por entre os dedos magros de bedel dos grandes poetas. É claro que, cá de minha parte, vou guardando nos bolsos frágeis as devidas proporções entre os meus arrotos poéticos e a tua obra monumental. A minha lira é desafinada, pobre e rude, mas vai tocando festiva e bêbada e pra frente, da mesma forma que o trombone furado busca um som harmonioso que na realidade é roufenho, cansado e triste nas horas mais amargas e também nas doces.

E o que vem a ser essa tal arte que rega espíritos tão distanciados no tempo e no espaço? Ora, tá! O meu bom amigo Flaubert disse um dia que o segredo da arte reside na sua própria beleza.

Agora lembro Camões apaixonado. Depois recordo Drummond: mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução…

Meio sem querer e sem jeito, já fui chegando e baixando e saravando e alinhavando, aqui e acolá, alguma poesia que o engenho me faz parir, no limiar do meu tempo, no meio do passeio público, sempre iluminado pela aura dourada do último grande sonetista do Brasil. Ah, o poetinha!

É preciso dizer ainda que também tenho vivido momentos de doçura e volúpia e libido fervente e infidelidade partidária, apesar dos polissíndetos, entre as musas e divas e ninfas e coelhinhas do meu tempo velho cansado de tantas guerras vencidas, e tão poucas perdidas, nas graças que me são concedidas pelo todo poderoso. Saravá!

Sua bênção, vovô Joaquim. Sua bênção, meu herói e Estivador. Sua bênção irmão Marcos, tu que me impregnaste com tantos exemplos dos bons e inesquecíveis… Sua bênção, meu poetinha! Tu que não és um só, és tantos como o meu Brasil de todos os santos, inclusive o meu poderoso São Sebastião, de Xapuri. Ora veja!

Também a mim, como a ti, anima a arte de entretecer a palavra que pode brotar doce, comedida ou ácida, dependendo da ocasião que faz ou desfaz o cidadão. Quando flameja o fogo das paixões dilaceradas pelos ciúmes e perturbações do amor, também falo das mulheres enquanto meras estátuas de talco, o que me é difícil ocorrer. A seguir, nos momentos em que todos os pássaros amazônicos são azuis, as deusas do meu tempo arregalam o peito e enchem de júbilo a minha pobre poesia triste, o meu espírito sutil, vagabundo, fóssil, volátil, fútil e devasso. Fico feliz e lembro o Mário de Andrade, professor de música: a verdadeira poesia só nasce nos momentos de grande devastação íntima. Ora bolas! Que assim seja, amém!

E por assim dizer, é como se em mim houvesse um pouco de Vinícius, até mesmo a candidatura à morte prematura aos setenta e cinco anos. Também a boemia e o gosto pelo violão que eu não sei tocar. Tudo isto aliado à companhia das mulheres mais belas da minha aldeia… E ainda a poesia, o uísque  –  o cachorro engarrafado  –  que me embriagam tão rapidamente.

Inspiremo-nos juntos e misturados. Então, assim ajustados, façamos uma literatura de qualidade ou não a façamos nunca. É que hoje eu amanheci Vinícius, como há cem anos passados. Fui cedo ao espelho. Vasta cabeleira clareada porque tingida ou pigmentada à caju, um gosto de azinhavre provocado pela bebida que eu não bebi ontem, quando fiz considerações supimpas segundo as quais as moças incultas e belas estão resguardadas dos pecados original e venial, porque mulheres bonitas não pecam, só atiçam libidos em desvantagem.

Ó doce mulher amada, no futuro, quando te perguntarem sobre o que foi ter convivido por tanto tempo ao lado deste vate desmesurado, tu dirás que foi um período longo de pura poesia, encantamento e sedução diária… Hás de mentir, sim, porque a verdade pode me tirar do aconchego do túmulo.

É verdade, ô poetinha! Eu não pari o meu mundo com violência, mas rodeado dos carinhos das mais belas mulheres, desde a minha mãe a esta última sócia no árduo empreendimento que é fazer e bem educar crianças humildes, mas felizes.

Penso mais uma vez dentre tantas, como durante toda a última eternidade. O poeta pegador namorou as divas do seu tempo, de Isis França a Marta Rocha, de Ieda Vargas a Helô Pinheiro. Ah, quem me dera!

Até cabe aqui deixar grafado em bom papel mesmo sem querer dizer que vivi ou vivo melhor que ninguém. Eu não vi o Ari nem o Noel, no Café Nice, nem o Donga, na Portela; mas vi o João Ubaldo nos botecos da Rua Miguel Lemos, em Copacabana, e o Vinícius dedilhando um violão na esquina mais poética do Brasil, da Delfim com a Prudente, em Ipanema, nos anos oitenta, quando, em rapazola, contava algo em torno das vinte e duas voltas ao redor do relógio maior.

Um certo dia, então, como o poetinha, resolvi ser feliz em segurança. Fiz concurso público e me tornei barnabé federal de algum quilate. Ele trabalhou enquanto diplomata. Eu me fiz servidor de um ministério qualquer, com uma baita grana mensal. A partir daí, eis que lá no céu também passaram a servir uísque importado, e não só o vinho que também revela muito do pouco que somos.

Enfim, anoiteci Vinícius de Mo-raes. É pra você, poetinha, então, que eu dedico esta canção:

TEMPO D’OURO
Vinha bela no seu balouçar de ancas largas.
A vila inteira em júbilo, em festa febril.
Depois, um susto, um derramar de pétalas…
Era médio ou pleno abril…
 
Pássaros, flores, lágrimas tardias, desilusões.
Rosas púrpuras, céu claro cor de anil.
Tempos ocres, cor de chumbo, rendas rasgadas.
O amor enredara-se e caíra em ardil.
Moribundos tantos de amores que são hoje cinzas.
É assim a tenra vida, o destino vil…
 
Julgaste-me muito bem ou mais ou menos mal.
Arrefecimento fátuo, pouco discernimento.
O tempo urgente balançou a árvore infrutífera
Muito próprio do amor, parco desentendimento.

Um leve adeus em mágoas e descontentamento.
Não sabias das minhas intenções, do meu intento.
E não viste nem por um breve momento
Que se os teus instantes não tinham nenhum valor,
Não devias desperdiçar os meus, em nenhum momento…
 
Coube então a última lágrima, um triste adeus, por Deus!
O amor houvera por bem enredar-se e cair no ardil
Temos morrido a cada instante destes tristes dias…
É assim a tenra vida, a sina, a morte, o destino vil…

* Dado à luz de um abril qualquer, em Xapuri do Acre.

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