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Como se fosse hoje

Escrever sobre as reminiscências é sempre uma viagem ao redor do teu mundinho emergente, em alto estilo ou em qualquer velocidade, cálido, às vezes barulhento, borbulhante, cheio de aventuras frugais, puladas de cerca ou muro, sapeca mesmo. É assim a vida do troteador ilusionista que só parece consigo próprio. Você. Teria sido talvez o sol causticante do nosso rincão amado que te fez assim, às vezes um tanto sutil, às vezes até cruel demais para com alguns corações chamuscados pelo fogo do lança chamas de polipropileno. Ula-lá!

Ah, foi aquele pedaço de chão tão querido que te viu ser dado à luz de um abril qualquer do século anterior! Como tu o amas, hein. Como aquilo tudo te é tão afeto, tão carinho, tão emoção. E é amor real o que sentes pelo Principado e por sua gente sempre tão gentil, tão voluntariosa, tão aconchegante, tão bonita. É sim! O Xapuri do Acre sempre teve lá o seu charme, os seus encantos, certamente, a partir de umas boas dúzias de belas moças que enfeitavam aqueles dias sempre tão flamejantes e felizes.

Lá colocaste o pé e já foste vendo que uma energia te atava, agora, a um mundo encantado e cheio da melhor de todas as bem-aventuranças. Algo em ti resplandeceu, se iluminou e, a partir de então, juntos e misturados, iniciamos nós todos a perceber que a mistura étnica ali começava, naquele momento, a fazer famílias a partir de casamentos entre libaneses, sírios, portugueses e nordestinos do Ceará. Foi essa  mistureba, esse caldeamento racial que gerou o povo mais belo dos sopés dos Andes. Pena que tu acabavas de nascer na rua das castanholas. Corria o Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1957. Uma bênção!

Então, moça linda e meiga e morena e flor e jambo paranaense um dia disse ter gostado do nosso povo logo ao chegar, ainda adolescente, pelo fato de ver no xapuriense, e muito mais em ti, um exemplo crasso, algo de convencido, metido mesmo, cheio de si. Entre nós, a pose tinha e tem a sua razão de ser. Como nós éramos e como somos esnobes! Coisa de Deus.

Alto verão nos trópicos. Livrara-nos, já, das friagens de junho e julho, sempre pontuais. Em plenos anos sessenta e setenta, a Praia do Zaire regurgitava das criaturas mais interessantes do mundo. Na parte sul, sentido Brasiléia, ficavam as famílias atentas para com as suas crianças menores a tomar sol e a banhar-se no Rio Acre. Ali por perto, logo se instalava Badia Fadoul com os seus quitutes originários da cozinha síria. Nas adjacências, moças e senhorinhas vestiam ousados maiôs para a época e para o espaço, mas poucos tinham coragem de lançar olhares furtivos, coisa de gente sem criação. Tudo morava apenas no pensamento em labaredas, como sempre assim foi desde que o mundo é mundo.

Lá na ponta norte, é que os moleques instalavam traves e faziam as suas pelejas futebolísticas. (Para os que não sabem, em Xapuri foi realizada a primeira partida de futebol entre acreanos).

Estava o padre a dar  por  encerrada a Missa, então, e todos a dizerem amém, já a praça principal  -Getúlio Vargas  –  ficava lotada de gente de pouca idade a rir da vida e da alegria relativa dada de presente por Deus que de nós sempre espera algum ou muito esforço.

E tu estavas no meio, com alguns amigos e amigas fêmeas belas de tirar o fôlego, fazendo firula, colocando banca, tirando onda, botando graça, dizendo pilhéria, mostrando alguma erudição que não tinhas, a não ser quando a você era dada a oportunidade de falar nos desmandos do Nikita.

As voltas ao redor da praça iam das oito e pouco da noite até umas nove e meia ou dez. Incrível é ninguém ficar tonto de tanto rodar no mesmo sentido quase sempre. Claro. Estava-se sempre de olho em alguém mesmo se ninguém nunca te visse. O importante era a participação em meio aos membros da comunidade principesca.

Aos dezessete, já um homem feito e metido a bacana, mandaste que o Luiz Beleza te fizesse uma calça estilo pantalona, de bocas largas. Pagaste, é claro. Já trabalhavas de secretário do Senhor Juiz de Paz, Frei José, que casava no civil e no religioso, batizava e registrava pela Comarca. Também compraste, no Luiz Galo, um sapato cavalo de aço marrom misturado à cor de vinho clarinho com o saltão branco. Uma beleza. Hás de lembrar, sim. Domingo, vestiste uma camisa de meia daquelas que deixavam aparecer um pedacinho da barriga, a la Roberto Carlos em ritmo de aventura. Compraste cigarros Pall Mall, carteira larga. Fumava só para se mostrar, para aparecer. Enfim, sentaste no banco da praça com as pernas cruzadas de modo a aparecerem alguns detalhes da indumentária dita elegante. Uns e outros te glosaram e passaram a achar que tu eras apenas um boçal…  Que nada! Era e é apenas coisa do estilo próprio.

O prefeito Coelho, ainda nos anos 40, houvera feito construir um coreto em feitio de lira, o instrumento musical em forma de arco fechado. À época, a banda era comandada pelo Maestro Zeca Torres. Nos nossos anos, a direção cabia ao Tenente Rui, um sujeito competentíssimo na arte de ensinar música a quem nunca havia visto um instrumento. Enquanto nós rodávamos na praça, os nossos músicos  mandavam brasa  mostrando, dentre outras, o que é que a baiana tem. Era assim a retreta, um elemento cultural inesquecível na história do nosso povo.

No canto superior esquerdo da praça, quase defronte à lira, ficava uma pérgula repleta de begônias plantadas  por um jardineiro japonês de nome Nagayoski. Os rapazes e moças que tinham uma certa liberdade favorecida pelos pais, ali trocavam juras de amor, dentre outras viagens pitorescas e pouco recomendadas pelo item que trata da moral e dos bons costumes.
Ninguém é de ferro. Os mais novos, de longe, ficavam só apreciando as atitudes dos pares. Uma sacanagem. Coisa de tremer a Terra. Os beijos iam para muito acima das temperaturas do verão. Os caras tinham uma pegada acima da média nacional. Virgem do céu!

Por tudo isto e por muito mais, eu dedico uma poesia, Suficiência, a todas quantas mulheres belas povoaram os sonhos do meu mundinho suficiente e feliz:

Admiro o olhar da mulher meramente franca e leve
Nela há o gosto adocicado da ternura e da aventura
Um não sei o que de não ser tardia ou breve
Já povoadora dos meus sonhos, da minha loucura.
 
Em doce e puro e frágil atônito delírio marcante
Escrevi versos, melopéias, prosa estonteante
Em júbilo não casto e em brinde festivo e galante
Às musas todas nuas deusas dos tempos meus.
 
Que nelas não atirem as flores de um ontem fingido,
Mas que lhes sejam dadas rosas cor de rosa mesmo
Em homenagem ao amor a esmo, misturado com torresmo
Seja do jeito que vier ou da maneira que for…
 
Ah, as fantasias fúteis, débeis, febris
Das cúpidas noites infanto-juvenis,
Quando divas, ninfas povoavam alcova suarenta
Delírios, sonhos quentes mesmo como apenas quis.

*José Cláudio Mota Porfiro foi dado à luz de um abril qualquer no Principado de Xapuri. www.claudioxapuri.blog.uol.com.br
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