Em meados de 2008 o então deputado estadual Zé Carlos (PTN) apresentou um projeto na Assembléia Legislativa para proibir o corte em escala comercial de espécies madeireiras nativas conhecidas por produzirem frutos importantes e indispensáveis para a alimentação da fauna silvestre das florestas acreanas. O projeto foi proposto depois que o ex-parlamentar retornou de uma longa viagem que fez nos confins de alguns rios e outras áreas florestais remotas do interior do Estado e foi cobrado de forma reiterada pelos habitantes locais para tomar providências no sentido de barrar a exploração madeireira indiscriminada em curso nas áreas que visitou.
Embora legalizada e executada observando as regras previstas em ‘planos de manejo sustentável’, a exploração madeireira não poupava espécies como a caxinguba, cajuzinho, copaíba, andiroba e gameleira, todas sabiamente conhecidas pelos habitantes da zona rural como fonte de alimentação para a fauna e usadas por eles como árvores de ‘espera’ durante as caçadas de subsistência que esses habitantes tradicionalmente realizam para obter a proteína animal indispensável para a alimentação de suas famílias.
O desaparecimento dessas árvores nas regiões em que ainda existe muita abundância de animais silvestres – geralmente lugares remotos e de difícil acesso – faz com que estes animais passem a buscar alimentos em outras áreas, muitas delas próximas de núcleos urbanos, onde se tornam presas fáceis para pessoas que não necessitam praticar a caça de subsistência. Nessas condições, a caça se torna uma atividade de lazer, esporte e, algumas vezes, comercial.
A eliminação das árvores de ‘espera’ deixa como única opção de caça para os habitantes das regiões mais remotas do interior do Acre os ‘barreiros’, locais com solo úmido no interior da mata, com esparsa cobertura vegetal, e visitados por muitos animais que consomem o solo para suprir suas necessidades minerais. Infelizmente nem todos os animais silvestres precisam visitar barreiros e isso diminui a opção de caça para os habitantes da zona rural.
Na época, por sugestão de seringueiros e ribeirinhos, foram citadas dezoito espécies que estavam sendo retiradas e que deveriam ter a exploração barrada em razão da importância de seus frutos para a fauna silvestre e, indiretamente, para os habitantes locais: gameleira, andiroba, castanharana, mirindiba, piquí, manitê, copaíba, caxinguba, gamelinha, toarí, envira-cajú, guariúba, cajuzinho, tatajuba, murici e ingá-ferro. A versão do Projeto de Lei que tramitou e foi aprovado na Assembléia Legislativa foi além e incluiu 24 espécies.
Naquela época e nos dias de hoje, proibir a exploração dessas espécies tem importância fundamental para a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente. Afinal, para ser realmente sustentável a exploração madeireira deve considerar, além da sustentabilidade da exploração do recurso alvo, as pessoas, os animais e outros elementos do meio onde é realizada. De outra forma, ao contribuir para ‘afugentar’ os animais responsáveis pela polinização das flores e a dispersão dos frutos de algumas das espécies madeireiras de maior valor, os madeireiros, além de contribuir para a extinção local dessas espécies, estarão agindo em clara oposição ao preceito básico do manejo moderno: a sustentabilidade.
Embora a intenção original do parlamentar fosse tão somente preservar as espécies usadas pela fauna local para, em suas palavras, ‘garantir que a caça não fugisse da mata e deixasse os seringueiros com fome’, na verdade o projeto teria um efeito bem mais amplo do que se imagina. Ele se constituiria na primeira ação concreta que combateria no Acre e na Amazônia brasileira o conhecido efeito ‘flores-tas vazias’ ou ‘florestas silenciosas’, que resulta da exploração seletiva em florestas tropicais. Nesta situação, a floresta, após a exploração comer-cial das principais espécies madeireiras, fica aparentemente intacta e vista de cima, tudo ainda permanece um ‘tapete verde’. Mas a realidade é que a maior parte dos animais e pássaros que se alimentava das espécies retiradas durante a exploração termina por migrar para outras regiões. Daí o termo ‘floresta vazia ou silenciosa’.
Restringir a exploração madeireira no Acre, mesmo a realizada com base em planos de manejo, é algo extremamente difícil tendo em vista os poderosos interesses econômicos envolvidos. Explico. A proibição da exploração de 24 espécies madeireiras no Acre tem o potencial de jogar o setor florestal do Estado em uma grave crise porque o número de espécies exploradas comercialmente na atualidade não deve chegar a 50. A proibição atingiria, portanto, quase 50% das espécies.
Mesmo assim a Assembléia Legislativa aprovou o projeto do ex-deputado Zé Carlos e, pasmem, na época não causou ‘comoção’ entre os envolvidos no setor florestal do Estado. A explicação para o desinteresse era e é relativamente simples. Até hoje o ‘grosso’ da exploração comercial madeireira no Acre está centrada em cerca de 20-20 espécies, com destaque para o cedro, cerejeira, samaúma, cumarú-ferro, cumarú-cetim, amarelão, alguns angelins, ipê, sucupira, mulateiro e o bálsamo. Como se vê, até hoje a maioria esmagadora das espécies de alto valor comercial exploradas no Estado não integra a lista daquelas de importância para a fauna e para os habitantes de regiões remotas que dependem da caça de subsistência.
Entretanto, quando o estoque dessas espécies comerciais se esgotar dentro de alguns anos, os madeireiros locais se voltarão para a exploração intensiva de outras espécies, e, com certeza, a copaíba, andiroba, jutaí, mirindiba, jatobá, manitê, toarí, castanharana, cajuzinho, guariúba e o pequí estarão incluídas entre as prioritárias. Isso acontece porque a exploração de madeira na Amazônia ocorre em etapas. Inicialmente se retiram apenas as espécies mais valiosas até que o estoque natural das mesmas diminui a ponto de tornar sua exploração antieconômica. No Acre estamos vivendo esta etapa. Na segunda etapa a exploração passa a focar na extração de espécies que foram deixadas de lado durante a primeira fase.
Em 2008 o governador Binho Marques (PT) vetou o projeto que protegia as espécies importantes para a sobrevivência da fauna silvestre acreana e, indiretamente, das populações tradicionais que vivem na floresta e dependem da caça de subsistência. É chegada a hora de fazer uma nova tentativa. Não podemos ser egoístas e ter a visão curta e o lucro imediato como norteadores de nossas atitudes. O futuro pertence aos nossos filhos e netos e, com certeza, queremos o melhor para eles.
*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa e do Parque Zoobotânico da Ufac.