Dali a alguns dias, anos talvez, as coisas da vida começariam a mudar de figura. Já não tardaria, e o ocaso da idade anterior apareceria no vão da porta do destino. Anotado em boa tinta estava que filho de pobre não tem infância. Nasce menino, ou menina e, em pouco tempo, já está adulto por força das circunstâncias de um cotidiano atribulado em que a busca interessante é muito mais por pão e bem menos por circo. Mas circo é circo. E pronto.
Já rapazola, aí pelas doze voltas ao redor do sol, compreendera que a vida não é tão difícil de ser tocada avante, se seguisse algumas pistas deixadas, principalmente, pela avó ranzinza e furibunda.
Para o bem da verdade, a maior de todas as descobertas foi quando, na escola, muitos garotos e garotas conversavam entre si, menos ele. Logo, logo, foi chamado de lerdo, ao que, desconcertantemente, veio a resposta em alto nível:
– Sou tranquilo. Não, lerdo. – E ficou sem conversar fiado por alguns degraus da vida que amadurecia a olhos vistos.
Foi por aqueles dias que a verdadeira história do menino pacato começou a ser esculpida. A paz interior lhe permitia atenção dobrada em tudo o que diziam, muito especialmente na escola. Nada lhe passava despercebido. Mesmo alguns detalhes do que era tratado pelos professores não lhe escapavam. Ademais, aprendeu, ainda, o caminho da biblioteca, recinto frequentado por anos a fio, até que os livros mais interessantes foram todos lidos. Talvez cem.
O resultado de tudo isso foi que, não mais tardou e o menino lerdo passou a usar e abusar de uma memória fotográfica adquirida e exercitada nos diálogos com os escritores mortos que lhe povoavam a mente. Veio, em seguida, uma professora magra e bela e angelical nos seus óculos miúdos que a ele ensinou os rudimentos da escrita. O moleque calmo aprendeu. Isto significava já meio caminho andado.
Alguns anos depois, o menino sossegado já tinha luz própria e, através de concurso, passou a fazer parte do serviço público federal, o que findou por arruinar as suas pretensões literárias. Só podia escrever ofícios e memorandos. Só depois, muito tempo mais tarde, foi que ele se soltou dessas amarras e escreveu crônica diversa e poesia largada de alguma qualidade, no dizer dos amigos da cidade princesa.
Todavia, apesar da vida calma que levava, como os outros moleques da sua idade, também passou a perseguir com bastante avidez os finais de semana.
-Ah, mais essa sexta-feira que nunca chega!
A fama rasa de garoto bom nos estudos não passou dos limites da rua das castanholas,ou talvez um pouco mais; porém, em compensação, a facilidade em arranjar amigos logo rendeu frutos e, ainda, uns parceiros cheios de firulas e traquejos.
Foi por essa época fantástica que, enfim, lhe apareceu o primeiro boteco e a primeira dose da famosa mardita:
Cachaça fruta do engenho
Feita do pau de capucho
Tu bate comigo no chão
E eu bato contigo no bucho.
Naqueles dias de Deus, reinava na cidade princesa um homem bastante gentil que dominava um boteco onde apenas era vendida a famigerada três fazendas, afora alguma cerveja rala que era comprada, a preço alto, pelos que tinham soldo para tal. Bom mesmo é que, na frente do estabelecimento, a amável esposa do empresário vendia um tacacá supimpa. Ruim mesmo era para o fígado que ringia porque a sopa apimentada dos paraenses servia de tira gosto para as goladas superiores da água que pássaro não bebe. Isto, aos sábados e longe das vistas do pai, um estivador de fino trato, porém linha dura.
Por lá, havia um bom amigo de infância que tinha nome de macaco, apesar de ser louro. Juntos, nós pagamos muitos micos, como as paixões que pendiam sempre por moças inatingíveis para moleques sacanas como eu e ele.
Um dia, então, em barco a motor do pai padeiro, fomos passear na fazenda de propriedade deles. Não havia bebida, de forma alguma. Todavia, logo depois da largada do porto dos estivadores, um amigo do futebol pediu carona e embarcou portando um litro do conhaque cinco estrelas. Uma grande porcaria. Um velho amigo viu a presepada e, em seguida, foi à casa do estivador a contar-lhe o que observara.
É claro que o pai ficou possesso. Tomar conhaque aos dezesseis anos era prejudicial demais para quem queria dar-se bem com as matemáticas.
Chegados à colônia, cumpriram algumas obrigações, como dar alimento aos animais domésticos. Em seguida, fizeram ovos fritos e foram caçar de baladeira, onde mataram pássaros e, depois, os devoraram misturados ao arroz e à farinha. Em seguida, colocaram arreios em dois cavalos e foram passear na cidade que ficava a cerca de quarenta minutos em lombo de montarias velozes. À tardinha voltaram, embarcaram e fizeram a viagem de volta pelo rio.
O menino tranqüilo não levantara nenhuma suspeita. Nada lhe perturbava. Mas, ao chegar à casa paterna, encontrou o pai estivador furibundo que só não lhe aplicou surra memorável porque a mãe achara por bem cheirar-lhe a boca em busca de vestígios de álcool, o que não foi constatado. Mesmo assim, foi proibido de ir dançar na boate do cabôco, exatamente num sábado de verão. Sacanagem!
Pior de tudo foi ter marcado encontro com uma namorada que nele nunca mais acreditou:
– Como é que eu, mais velha, vou namorar um cara que ainda fica de castigo e apanha do pai… Pode? – Foram estas exatamente as palavras da bruxa fantástica que lhe deixou o coração enfeitiçado por alguns longos meses.
A boate abria às sextas-feiras, mas lá pouca gente ia, talvez, por uma questão cultural de uma comunidade onde a maioria das pessoas trabalhava aos sábados. Mas lá estava o moleque mais tranquilo que nunca.
Corria mais ou menos o ano depois da copa do mundo de 74. Passou a ganhar algum dinheiro que era repartido ao meio entre os gastos pessoais e os domésticos, posto ser filho de pobres. O trabalho como ajudante na construção civil era uma necessidade da família e uma exigência do pai. Lá estava o moleque pacato pela manhã e à tarde. À noite, fazia o curso pedagógico no colégio das freiras. Sem maiores problemas e sempre com alguma proeminência um tanto parda, ou morena, ou mulata, mas cheia de vida.
Foi por essa era que lhe chamou a trabalhar o padre mecânico no seu juizado de paz… E a grana melhorou. Agora, já dava para a compra das calças boca de sino e dos sapatos cavalo de aço, além de outros luxos mínimos. Melhor ainda é que lhe sobrava algo em torno de 50 cruzeiros com os quais já conseguia tomar algumas cervejas às sextas e aos sábados, agora, em companhia de meninos de boa safra, filhos de médicos, bancários, coletores, vereadores, além de alguns próximos da coorte que naquele tempo ditava as regras no principado…
Mas aí já são outros quinhentos…
Certo é que a vida continuou melhorando e o barco singrando os mares interiores, de vento em popa, com as graças do bom Deus de Isaac, Davi e Abraão.
*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas; e O inverno dos anjos do sol poente, romance de viagem cujo foco maior é o Acre dos anos 40 e 50, a ser lançado em junho próximo. Cronista do jornal A GAZETA, de Rio Branco, Acre: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br