No feriadão da Semana Santa, entre 17 e 21 de abril, percorri os 650 km da BR-364 de Rio Branco à Cruzeiro do Sul, num carro pequeno (um Fiat Siena 1.0), para ver se é verdade o que alguns políticos que desdenham das coisas do Acre dizem da estrada. Não é. Ela pode parecer imperfeita, mas não oferece riscos, e tem qualidades que a tornam fundamental para a sustentabilidade do Estado.
Uma epopeia
Já se vão mais de 40 anos desde que a BR-364 Rio Branco-Cruzeiro do Sul começou a ser aberta pelo 7o BEC, do Exército, com duas frentes de trabalho: uma partindo de Cruzeiro até o Rio Gregório; outra na direção contrária, saindo de Rio Branco. Carlinhos, o condutor do Fiat em que viajávamos, era do batalhão e participou da primeira equipe de 14 homens que entrou na mata bruta em 1971 para uma permanência de dois meses na frente pioneira. Ele disse que parte dos alimentos era lançada de avião, em paraquedas, e os militares completavam o rancho com a caça, o peixe e frutos colhidos na floresta. Havia fartura: o soldado Do Vale matou, de uma só vez, 12 pacas.
Em meados dos anos setenta o Batalhão largou a estrada, cabendo ao desestruturado Departamento de Estradas de Rodagem do Acre operar o milagre de manter o que estava feito. Assim se passaram os anos até o início de 2001, quando o então governador Jorge Viana se interessou em avançar com a melhoria dos trechos mais complicados. Conhecendo o histórico da estrada e ouvindo horrores sobre a tabatinga, Viana chegou a pensar em estrada de ferro como alternativa. Mas a ideia não vinga. É forte no Congresso Nacional o lobby que defende o transporte rodoviário.
Ou seja, a alternativa era conseguir recursos de Brasília para finalizar a estrada problema. O ex-governador Orleir Cameli (falecido), antes do Jorge Viana, tentou isso, mas o buraco era mais embaixo. Como dono de construtora, asfaltou alguns trechos, ganhou dinheiro e se aquietou. Jorge foi além porque contou com o mestre e tutor político Luís Inácio Lula da Silva para abrir o cofre federal. No seu Governo da Floresta, cujo logotipo era uma arvorezinha daquelas que se vê enfeitando cadernos escolares, o Acre ganhou estatura ecológica. Digamos que fez o dever de casa: produziu o ZEE (Zoneamento Econômico Ecológico) e ajudou a formar um corredor de áreas protegidas junto a fronteira internacional com Peru e Bolivia. O Parque Nacional da Serra do Moa, a Reserva Extrativista do Juruá, as terras indígenas, incluindo a dos Isolados e o Parque Estadual do Chandless, entre outras, passaram a fazer parte desse corredor.
O ex-governador (hoje senador) saiu com o irmão Tião Viana, atual governador (na época senador) para arrancar recursos do PAC e convencer o DNIT, o órgão gestor das estradas federais, a enxergar sua responsabilidade nesta ponta ocidental da Amazônia. Coube ao historiador e professor Binho Marques, sucessor de Jorge no governo (2006-2010), com dinheiro em caixa promover a conclusão do trecho acreano. Nunca se viu tanto rebuliço no império da tabatinga: seis empresas construtoras, 1500 máquinas pesadas, 3 mil e quinhentos homens metendo a mão na massa, montanhas de terra, brita, areia, cimento e ferro sendo removidas de um lado para outro, tudo acontecendo sobre a critica insensata dos pregoeiros do Apocalipse.
Binho passou o bastão ao Tião Viana que enfrentou um contingenciamento de verbas em Brasília, mas o superou, após remover a tabatinga de alguns gabinetes. Nos anos 2011, 2012 e 2013, as seis empresas que tocavam a obra abandonaram os canteiros e coube o Deracre, mais uma vez, garantir sobrevida à BR. O engenheiro Marcus Alexandre, atual prefeito de Rio Branco, então na direção do departamento, com seus funcionários e 100 empresas terceirizadas na execução concluiu a rodovia em 2013.
“Eu fui ao Acre e vi que, realmente, a construção da BR-364 no estado é uma epopeia”, declarou o ministro do Transportes, César Borges, ano passado. Que bom que ele viu!
Riqueza da floresta
A BR-364 entre os extremos do Acretem no entorno da parte sul um potencial natural ainda pouco conhecido, mas que já se sabe enorme. A estrada é quase uma linha reta de 520 quilômetros contados a partir de Sena Madureira, ou de 440 quilômetros se contados a partir de Manoel Urbano. No entorno se estende o complexo florestal do Mogno e Liberdade (referencia ao Rio Liberdade), onde se acha a maior concentração de mogno na Amazônia. Da linha em zigue-zague da fronteira com o Peru e a Bolivia descem rios poderosos como Purus, Envira, Tarauacá e Juruá correndo no sentido transversal, com mistérios e tesouros a serem desvendados.
A informação parte de quem tem a responsabilidade de cuidar desse patrimônio ambiental no Estado: o titular da Secretaria de Indústria e Comércio e do Desenvolvimento Florestal, Edvaldo Magalhães, e seu secretário-adjunto Fábio Vaz. Os dois trocam experiências enriquecedoras com as comunidades tradicionais que ocupam as margens da rodovia e, na medida do possível, vão adequando a linguagem técnica aos anseios dos sábios da floresta.
Até agora, a estrada tem sido ocupada por ex-seringueiros e ribeirinhos, além dos indígenas cujas aldeias acompanham 20 quilômetros da rodovia nas proximidades de Cruzeiro do Sul. Isso impõe, de algum modo, um diálogo entre saberes, entre as tecnologias do planejamento governamental e as praticas tradicionais.
Levei algum tempo conversando com os dois na quinta-feira passada. Edivaldo lembrou um encontro que manteve com moradores sobre a formação de vilas ao longo da BR-364 que poderão se transformar em cidades no futuro. Uma senhora de nome Aparecida fez um discurso que ficou gravado e o deixou emocionado:
-Ela disse que queria uma vila com cara de floresta. E essa vila está nascendo na beira do Rio Gregório. Construímos casas de madeira como a comunidade quer, e até o coordenador do projeto foi escolhido entre eles. A coisa funciona rápido e simples quando são eles que escolhem como fazer.
Segundo o secretário, vá-rios projetos estão em andamento nas cidades de Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul, e todos estão relacionados às possibilidades de desenvolvimento sustentável envolvendo famílias extrativistas. Em Feijó, por exemplo, foi criado um projeto de fruticultura com uma despolpadora de frutos e empacotamento de grãos, prevendo o crescimento da produção de açaí. Já foram plantados 2 mil hectares da espécie. E está previsto em curso, também, a produção de bananas prata, maça e comprida, e 115 moradores desenvolvem a criação de peixe em açudes.
Outro projeto considerado promissor é o manejo comunitário de madeira com 200 famílias já contratadas. O secretário garante que o manejo será feito “do jeito deles”, com serraria portátil e modo tradicional de arrasto. “Vamos legalizar a prática deles, tradicionalmente sustentável”. A atividade será fortalecida, segundo Edvaldo, com polos moveleiros montados em Tarauacá e Cruzeiro do Sul. Neste município já existem 15 industrias trabalhando.
Considerada capital do Vale do Juruá, Cruzeiro tem uma população com característica empreendedora invejável. Há décadas se ouve falar bem da farinha local, considerada a melhor do país (e quiçá do mundo); do pó de guaraná, do biscoito de goma, dos barcos que eles constroem por lá e do refrigerante de guaraná. Edivaldo, que é cruzeirense, se orgulha de contar a história da “Vó Didi” (falecida há cerca de um mês, com 90 anos), que trouxe do Ceará a receita do biscoito de goma. A mágica é simples: o biscoito só presta se for secado ao sol.
Pois uma fábrica de biscoitos será inaugurada na cidade no próximo dia 10 de maio, com 12 secadores de sol. Várias mulheres que receberam a receita como herança de Vó Didi organizaram a cooperativa Cooperbiscoitos e vão tocar a fábrica construída pelo governo com financiamento ambiental. Outra novidade vem de uma família que constrói barcos em Cruzeiro. Trata-se da “Bajola”, uma voadeira com motor de “rabo” que bate os modelos de metal em velocidade e estabilidade. Certamente, também no preço.Tem mais: Os filhos do senhor Zinho (falecido), tradicional plantador e industrial do guaraná, decidiram manter a atividade do pai e acabam de lançar o refrigerante “Cruzeirense”, produzido numa fábrica que em julho começa a funcionar em escala regional.
Todos esses produtos made in Vale do Juruá, como preveem Edvaldo Magalhães e Fabio Vaz, poderão sair pela estrada e conquistar mercados com protagonismo e cultura diferenciada. Quem sabe, substituindo gostos, práticas e conceitos bolorentos.