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Que Deus o tenha por muitos anos sem nós

O homem mais velho merece respeito não pelos cabelos brancos ou pela idade, mas pelas tarefas e empenhos, trabalhos e suores do caminho já percorrido na vida. Esta máxima está contida no livro sagrado dos judeus. Observo ainda que muitos são aqueles que se compadecem da penúria que alguns anciãos enfrentam em idade alta, posto que estes tiveram toda a vida para solidificar o futuro, mas não o fizeram muitas vezes porque as oportunidades lhes foram negadas.

Vi, uma vez, um cidadão de tristes bigodes cinzentos a empurrar um carrinho de picolé, ao meio-dia ou um pouco mais. A cada esquina ou de poste em poste, da cabeça ele tirava o chapéu surrado e, com as costas das mãos muito enrugadas, limpava o suor da testa e seguia em frente sem que quase ninguém lhe abordasse para provar a guloseima. Aquele semblante não me era estranho. Já o vira em alguma ocasião. Minha memória fotográfica dificilmente se enganaria. E mais uma vez estávamos certos, eu e ela. A alma voou para os seringais Lua Cheia, Babilônia e Triunfo, no Rio Xapuri.

À minha aproximação, pedi-lhe um picolé e perguntei se conhecia um homem por nome Manuel Tenório. Ele aquiesceu. Era o próprio. Desfizera-se dos bens, dentre os quais os três seringais imensos, e viera para a cidade. Agora, aos oitenta anos, morava no bairro da Sobral e os filhos lhe haviam surrupiado tudo, tostão por tostão. Ficara muito pobre, depois de toda uma vida de folguedos, viagens e diversões à custa do dinheiro retirado da coleta da seringa.

Fiquei condoído com aquela situação, apesar dos meus vinte e poucos anos. A partir daí, nunca mais deixei de pensar, diariamente, nos meus dias que hão de vir numa velhice que não tarda para ninguém.

Volto, agora, no tempo meu cansado de tantas vitórias e raras derrotas. Assim quer Deus.

Era já noitinha. Havíamos ido à novena na matriz, às sete. O relógio nem chegou a contar meia hora e já estávamos a receber notícia trágica. O bom velhinho acabara de partir para outros mundos em busca de tarefas talvez mais árduas. Depois de rezar por três anos, de madrugada, uma oração católica muito antiga chamada ofício de nossa senhora, como encomendação da alma que estava prestes ao encontro com Deus, o sertanejo cansado pereceu, na minha casa da rua das castanholas.

A residência do meu avô ficava incrustada no alto de um barranco à beira do rio das nossas vidinhas mansas. O sítio era bem aconchegante. Ele vivia numa casinhola em meio a um velho plantio de laranjeiras, um roçado e um bananal. Criava animais de pequeno e médio porte. Já ultrapassara em muito as setenta voltas ao redor do sol, mas era teimoso feito o sertanejo da vida real e dificílima.

Ainda moço, fizera as suas proezas e valentias, ali próximo aos portos e armazéns da cidade princesa.

Viera do Ceará. Nascera em uma cidadezinha chamada São Bernardo de Russas, no meio do sertão seco de areia. Perdera o pai afamado e bem de vida numa refrega, em meio a um tiroteio no alto sertão da Meruóca, quando este se envolvera em uma confusão por disputa de terra. Menino de treze anos, tomaram-lhe todos os bens que teria como herança. Ficou sem eira, nem beira, nem a rama da figueira, como se dizia por lá. Foi enxotado da terra natal, do chão que era seu.

Casara-se em Óbidos, cidade paraense, com uma moça bem bonita filha de pais índios da tribo tupinambá. Trabalhara no corte da seringa, mas quisera vir para as bandas do Acre, lugar onde se catava dinheiro com cambito; esta uma propaganda enganosa muito usada na época. Lá, vieram-lhes os primeiros dois filhos. Estes chegaram ao Acre, ainda bem pequenos, aí pelos idos de 1923.

Em aqui chegando, embrenhou-se na mata à cata de castanha, seringa e esperanças. Não deu certo, uma vez que adoecia sempre e não tinha porte físico para azáfama tão estafante. Homem de metro e meio, primeiro trabalhou escorando carga em burro de comboio. Mas findou por escolher o trabalho agrícola em um quinhão que se fez próspero por algum tempo. Depois, não mais.

Vieram-lhes muitos filhos.

Eram, já, agora, homens um pouco mais altos, por haverem sido criados na bonança, à custa dos carboidratos da mandioca, do ferro do feijão e das proteínas dos porcos e carneiros, além dos animais da floresta. Eram sete homens e três mulheres fortes e rijos que logo seguiram os seus caminhos deixando o casal de velhos com a filha mais nova à mercê do sustento que lhes dava a terra e de alguma ajuda de um ou outro dos filhos que tinham alguma possibilidade.

Lembro o dia de uma arruaça do velhinho, ainda aos setenta, mais ou menos. Ele houvera tomado a água que os pássaros não bebem. (Gostava da branca e nisso eu puxei a ele). Ali pelas adjacências do mercado municipal, depois das dez da manhã, Joaquim, o meu herói, passou da conta. A cachaça subira à cabeça e lhe fez soltar impropérios em alto volume para cima de um amigo, o bom Jorge Kalume, à época prefeito da cidade.

O velhinho não poupou os adjetivos mais pesados possíveis e, quando a polícia o veio fazer aquietar-se, o homem, apesar de insultado, não se sentiu ofendido e mandou que os dois policiais o levassem para a casa onde o filho fez dormir o valente.

E não teve problema. Em algumas luas depois, o meu herói já estava, mais uma vez, na fila dos corredores da escola pronto para votar no prefeito, embora não fosse do agrado do meu pai.

Em criança, observei que ele tinha um grande carinho pelas muitas noras. Nenhuma delas jamais disse qualquer má palavra em relação a ele, sentimento este que não era alimentado quando se referiam à sogra.

Com relação aos netos, o amor era ainda maior. E todo esse amor me faz lembrar que, se não fosse pelo fato de ter um deles enquanto contador de histórias de vida, ele seria, certamente, mais um herói anônimo enterrado em cemitério ermo na cidade de Xapuri.

Um dia, a prova do amor maior… Ele estava vindo do sítio com o intuito de morar na casa do filho, a minha casa, de onde não mais voltaria. Já aos setenta e cinco anos, trouxe oitenta laranjas maduras de presente para os netos, dentre os quais eu. Era um bom velhinho. É ainda um dos pequenos caudilhos sertanejos sangue do meu sangue, todos eles calejados pela vida áspera e pobre que lhes legou o destino ranzinza.

Uma melancolia infinita me assalta agora a alma saudosa e orgulhosa de pertencer a uma estirpe de homens bons naquilo que sabem fazer.

Olhando cá para os meus botões molhados de lágrimas tardias, deixo-me agora invadir por uma nostalgia intensa e profundo pesar pela lembrança dos meus heróis que tombaram mortos depois de tanta refrega em busca por livrar-se da fome que atormenta os desvalidos sertanejos do Nordeste do Brasil. Penso, então, num aforismo francês bem antigo segundo o qual os velhos gostam de dar bons conselhos para se consolarem de já não estarem em estado de dar maus exemplos.

Assim era o meu bom velhinho, um dos heróis da raça dos Porfiro.

*Autor de Janelas do Tempo, livro de crônicas; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, com lançamento marcado para o dia 27 de junho próximo.

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