Entre as fendas da rocha preta, no alto de um penhasco, o juazeiro velho e solitário enfiou as garras como a jaguatirica enfia as raízes em carne maciça. O pouso se faz já de olhos fechados desde há mais de um século. Cá de cima do galho mais alto vejo, de um lado, a paisagem desoladora dominada pela terra seca. Mais ao leste, aqui bem perto, o verde dá o tom das vidas. O sobrevoo vertiginoso diário me leva aos confins do sertão. De lá, volto com o crepúsculo. Já faz frio. Eu sou a águia sertaneja. Minha alma está encarnada num carcará fêmea nunca vista por olhos humanos desde bem antes dos tempos do cangaço.
O vento é aragem fresca que ganha a colina e invade as terras altas a partir das bases de pedra cinza, e sobe a serra em desabalada velocidade. À noite, lá no cume, o frio é intenso e poucos caçadores ali se aventuram em busca de víveres em terreno hostil. É primavera. Aqui me visita o sono doce e reparador de todas as noites. A folhagem densa se arrepia e se agita freneticamente como se quisesse traduzir algum tipo de felicidade de alguém que por ali passou ou por aqui ficou. A areia fina faz redemoinhos em locais específicos.
O sol quase se põe, agora. Estou a vislumbrar o panorama acima dos demais entes. Na distância, muito, muito longe, está emoldurada, em rabiscos tênues, a paisagem sertaneja causticante de arbustos ressequidos pelo tempo e pelo vento. Aqui, no entanto, prevalece o verde. Há frutas de outra estação e de outras regiões. Pássaros chilreiam. Lagos e riachos não perdem água, nunca. Lá a desventura, a fome, a sede. Aqui a bonança. Lá a natureza se faz inclemente, madrasta. Aqui, é mãe gentil que acaricia e beija a filharada sem nome.
Cá eu nasci. Sou Maria de batismo. Não estou apressada em morrer. Mais de um século depois, alguns dos meus me mantêm viva nas suas memórias descomunais. Essa raça de cabeça grande e chata é a minha gente. Eu os ajudei a parir e a criar, e muito bem criados, com vergonha na cara do tipo pra dar e vender. E não se meta a besta!
Uma casa grande ao lado de uma menor que tinha, ao seu lado, uma moradia de tamanho ainda mais reduzido. Uma irmã e dois irmãos filhos de pais falecidos quase no final do século anterior do anterior. Assim era lá. Só que a vivenda mais simples podia contar com seis aposentos e salas e cozinha, além de vastos jardins, currais e plantios. Imagine as demais! Se ficassem juntos, comporiam eles uma das famílias mais aquinhoadas do Ceará. Nada lhes faltava. O que lá não havia era solidariedade, nem amor, nem união, nem paz. O que lá exorbitava era a cobiça, a rixa e a inveja de uns com relação aos que os demais possuíam. Até os filhos de cá eram mais bonitos que os de lá, e vice-versa.
Passados dois anos depois do desaparecimento dos pais, os primeiros donos do lugar, um dos irmãos falou à irmã sobre a compra do seu quinhão, uma vez que, segundo este, o marido não lhe valia muita coisa, além de ser um grande reprodutor, inclusive fora de casa. Só.
Os irmãos homens cercaram os domínios da irmã. Esta, por sua vez, não se fez de rogada e, numa tarde de domingo, aproveitando o vento seco do pé da serra, ateou fogo nos domínios dos dois. Tudo virou cinza, inclusive a parte dela. No outro dia, enfurecidos com a atitude da irmã, os dois vieram até ela e foram recebidos a tiros, muitos tiros, como nunca mais se ouviu falar lá pelas bandas do meu amado Baturité das esperanças frustradas.
Corria o ano da graça de 1898. Eu até podia contar com uns dois anos de idade, talvez. Um primo de Conceição, minha mãe, intendente municipal e delegado de polícia, foi quem nos resguardou da sanha vingativa dos irmãos Mota, um povo com sangue no olho e disposição para tirar à unha as tripas de qualquer desafeto seu que fosse, inclusive a irmã.
Veio o juiz. Também esteve presente o vigário e o tabelião, e não sei quantos mais. A ira dos irmãos foi amenizada. Eles tinham o suficiente para reerguer os seus casarões. Conceição, o marido e as três crianças, em lombos de burro, rumaram para a Fortaleza do Ceará, deixando para trás, de esmola, a parte que lhes cabia no latifúndio ainda hoje sob o domínio dos Mota de lá, até agora muito ricos e donos de uma herança política que chegou a render governadores e senadores.
Os homens quando não são forçados a lutar por necessidade, lutam por ambição. Era mais ou menos assim que dizia o Príncipe Maquiavel.
Conceição e sua prole foram expulsos do quinhão rico que lhe deixaram os pais. A ambição é cachorro doido que morde qualquer um e a este empresta capacidade de cometer atos indizíveis.
Nada demoramos em Fortaleza. Embarcamos em navio infecto e rumamos para Belém do Pará. Corria o ano de 1900. O dinheiro que nos arranjaram os parentes mais próximos foi o suficiente para a compra de um casebre e alguns pertences na região do Reduto, o bairro da beira d’água.
Um dia, aos nove de idade, eu, Maria de batismo, e filha de Conceição, fui matriculada nas escolas engraçadas, de Marcelino Pão e Vinho, de primeiras letras. Ao contrário da maioria dos nordestinos, era crescida, uma vez que me suprira de boa alimentação desde os tempos do Baturité velho de guerra.
Ao meu lado, então, no primeiro dia de aula, seguiram meninos e meninas talvez da mesma idade, mas baixinhos, como é comum entre os papa chibé. Alguém, à passagem da turminha, disse algo do tipo:
– Esta Maria até parece mãe de todos estes meninos. Ela é tão grandona.
Foi a última vez. Maria nunca mais voltou à escola.
Alguns anos mais tarde, juntos, nós embarcamos em um navio. Já era noitinha. Conceição, minha mãe, e Honorato, meu pai, disseram às crianças que estavam indo para o Acre em busca de catar dinheiro com o cambito. Tudo seria muito melhor. Ali a riqueza seria dividida entre todos.
Do tombadilho da embarcação, eu, agora aos dez de idade, fiquei vendo que as luzes de Belém foram ficando cada vez menores, até ficarem miudinhas e, depois, desaparecerem, para sempre. Nunca mais voltei àquela terra. Também não regressei ao amado Baturité das esperanças roubadas, saqueadas.
O navio, de nome Republicano, trouxe a família diretamente para Xapuri do Acre, uma terra cheia de gente decidida, como era Conceição e também era Maria.
– Dá no osso e a lama no pescoço… Ou rica dona do engenho, ou pobre carregando o bagaço da cana.
Montaram, sim, um pequeno engenho, na Praia Formosa, depois por alguém denominada Praia do Inferno. Viveram tempos de prosperidade e bem aventurança, mas a alta idade findou por levar os dois. Morreram com diferença de uma semana. Uma fraqueza os abateu em um ou dois anos.
Fui ficando e, aos vinte e dois de idade, casei com Arcelino, um homem de quarenta, também cearense, que findou por morrer aos cinqüenta e três. Com essa idade, já se era muito velho naqueles tempos do Acre do início do século anterior.
Nasceram de mim seis crianças, três meninas e três meninos, isto, a cada dois anos. Depois da viuvez, tive que me desfazer dos bens deixados pela família. Fiquei com um casa pequena, um roçado apenas e um rio cheio de peixe.
Um dia, num átimo de desespero, postei-me à beira do barranco para lá de cima me atirar numa atitude suicida que deixaria seis crianças sem pai e sem mãe. Por três vezes lá fui e por três vezes o Almiro, menino mais novo, chorou me chamando à realidade. Desisti.
Foi por aqueles dias que um dos irmãos veio em meu socorro. Fui morar em Xapuri numa casa grande de madeira deixada pelos meus pais. A profissão era lavar roupa para os ricos e costurar calças e camisas sem muito luxo para os cearenses humildes da terra.
O menorzinho faleceu de tifo aos cinco anos. O do meio se apagou vitimado pelo tétano, aos doze. Um osso velho de jabuti fez a desgraça. O mais velho dos meninos morreu de tiriçapreta aos trinta. As meninas eram bem fortes. Casaram e foram felizes, na medida do possível.
Em uma certa noite, caminhávamos para uma festa na colônia. Veio um homem bêbado e achou linda a minha mais moça, a Nenem.
– Uma mocinha graciosa dessas bem poderia casar comigo. O que a senhora acha, D. Maria?
De posse de uma acha de lenha, abri uma brecha de meio palmo na cabeça do afoito, para ele nunca mais mexer com filha de mulher de vergonha.
Minhas filhas arranjaram maridos bem traquejados na vida. As duas mais velhas se casaram com dois seringueiros cearenses. A mais nova e mais bonita casou com um tal que era padeiro no verão e estivador no inverno. Nunca passaram fome, e isto já estava de bom tamanho.
No mês de maio, anualmente, rumava para o seringal, onde fazia veraneio por seis meses; findos os quais retornava para a cidade do Xapuri. Vinha o aniversário da filha, do genro, o Natal, o Ano Novo e, enfim, o dia de São Sebastião, o pai dos seringueiros.
O último navio da temporada das cheias do rio ancorava no porto antes do Carnaval. Era o Envira. Carregavam-no de borracha e ele se ia rio abaixo, com as últimas águas, só depois da folia.
Com a família da filha mais nova, um dia, mudamo-nos para a capitá de Rio Branco do Acre, onde os pirralhos se fizeram doutores. Um dia, enfim, aos noventa e cinco anos, houve por bem desencarnar. Já estava cansada e tinha tarefas por cumprir em outros mundos, como neste chão batido do meu Baturité que em vida nunca mais eu vi.
*Autor de Janelas do Tempo, livro de crônicas; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, com lançamento marcado para o dia 27 de junho próximo.